Considerado o primeiro filme de ficção científica, a obra “Viagem à Lua” era lançada em um dia como este, na França, no ano de 1902. A produção francesa foi inspirada em dois romances populares de sua época: “Da Terra à Lua”, de Julio Verne, e “Os Primeiros Homens na Lua”, de H. G. Wells. O filme teve roteiro e direção de Georges Méliès, com assistência de seu irmão Gaston Méliès. O filme foi sucesso de público em sua época e foi, provavelmente, além de ser o primeiro filme de ficção científica, o pioneiro sobre seres alienígenas. Uma de suas famosas cenas é a imagem de um foguete no olho do rosto na Lua. Fonte: https://seuhistory.com/hoje-na-historia/lancado-viagem-lua-considerado-primeiro-filme-de-ficcao-cientifica
“Fantasia é o impossível tornado provável. Ficção científica é o
improvável tornado possível.”
(Rod Sterling, criador da série “Twilight Zone”)
“O equilíbrio entre ficção e realidade mudou na última década. Seus
papéis estão invertidos. Somos dominados pela ficção. O papel do escritor é
inventar a realidade.” (J. G. Ballard, autor de “Império do Sol”)
A ficção literária é certamente um bálsamo para muitas das
dores e dos males que torturam a humanidade desde os tempos que remetem à
aurora das civilizações. Nesse sentido, a literatura serviu de consolo e de
escapismo para um número infindável de pessoas ao longo da História, mas a
intensificação das angústias provocadas pelo rápido desenvolvimento da
tecnologia e das cidades no século XIX impôs novas dificuldades para o gênero
humano. Novas curas eram possíveis na mesma velocidade que novas doenças eram
descritas; tecnologias eram criadas vertiginosamente para dar conforto para
desconfortos criados décadas antes ou para criar necessidades que não existiam;
embora, evidentemente, haja um sem número de tecnologias oriundas desse tempo
que foram e são muito úteis à humanidade e que mudaram a perspectiva do homem
de se relacionar com a sociedade, consigo mesmo e com o outro, são alguns
exemplos: a fotografia, a refrigeração artificial e a lâmpada elétrica.
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Nessa época vertiginosa, a arte proveu diversas respostas ou
reações a esse novo mundo que se adiantava: as Vanguardas Europeias, o Realismo,
o cinema, por exemplo, foram algumas dessas manifestações, todavia a mais
afinada interação entre a Arte e esse momento único da história humana, que foi
o século XIX, em especial sua última metade, foi a Ficção Científica com seu otimismo
de época, o qual apontava para um porvir em que o homem resolveria grande parte
dos seus dramas por meio de utopias tecnológicas e sociais em que a dor e o
medo eram apenas lembranças ou em que a tecnologia seria o artificie de um novo
e muito melhor mundo.
Nesse tempo, também chamado - grosso modo - de Era Vitoriana,
mesmo percepções sobre o tempo e a distância foram radicalmente alteradas por
intermédio da força do vapor e das mensagens telegráficas, por exemplo, o que é
estudado no ótimo “The victorian internet” de 1998, escrito por Tom Standage
(1969-). O contexto da evolução estética e temática da Ficção Científica é,
assim, marcado pelo signo da revolução, da velocidade implacável para muitos e
necessária para uns poucos vanguardistas das mudanças ocorridas em todas as esferas
da experiência humana com o novo ideário proposto desde a Revolução Francesa; pela
Revolução Industrial que alterou os rumos não só do produzir, como das relações
humanas e sociais; pelos novos ares políticos e sociais relativos ao
Nacionalismo, à Comuna de Paris, ao Anarquismo, à Belle Époque, etc.; pelos
adventos tecnológicos como o motor a vapor, o telégrafo com fio, o rádio, o
telefone, a fotografia, o gramofone e o cinema; pelo desenvolvimento de ideias
deterministas na ciência; pelo Cientificismo; pelo Evolucionismo; pela
disseminação de ideais feministas, socialistas e comunistas; pela urbanização
acelerada e excludente; dentre muitos outros acontecimentos e concepções que
mudariam não só a forma de o homem ver o mundo, mas também de senti-lo.
Nesse ínterim, a arte em geral, mas especialmente a
Literatura, passou a meio de expressão das ideias e sensações mais íntimas,
imaginativas e mesmo impossíveis dos artistas, até mesmo as inconfessáveis;
tratou do feio, do grotesco, do incomum, do assimétrico, do sonho, do delírio e
do futuro de forma inédita pela sua intensidade e frequência; tornou-se de
forma inequívoca mercadoria, mesmo quando tentava boicotar o sistema
capitalista; impôs-se como antecipadora de tendências, atitudes, vontades,
etc.; politizou-se a ponto de servir a regimes como aparato de propaganda ou a
ideias revolucionárias e iconoclastas; flertou com o hermetismo, a
inacessibilidade e a plurissignificação; etc. Desse emaranhado de novidades,
rupturas, contestações, continuísmos, enfim, desse tempo paradoxal e
vertiginoso, nasceram os princípios estéticos, científicos, especulativos e
ideológicos que mais tarde seriam
identificados com certa naturalidade ao longo do século XX como Literatura de
ficção científica, que de forma mais generalista é uma espécie de ficção
especulativa.
Mais precisamente, vê-se nesse período a ocorrência de
diversos eventos que, de forma direta ou indireta, são inspiração, matéria e
alvo das inúmeras obras de Ficção Científica criadas no século XIX de forma
mais espontânea e, no século XX, já com uma consciência teórica a respeito dos
limites dessa categoria literária. Tais eventos passam a interferir decisivamente
na forma do homem pensar, produzir, agir, ver e sentir – mais ainda em alguns
homens e mulheres que têm sua imaginação instigada ou mesmo libertada por
algumas dessas ideias, ideais, invenções, eventos, etc. - são alguns deles: as
Revoluções Industriais, as unificações italiana e alemã, a Comuna de Paris, a
1ª e a 2ª Guerras Mundiais, a Revolução Russa, o Fascismo e o Nazismo, o
Colonialismo Europeu, o Darwinismo, o Liberalismo econômico, o Positivismo, a
Teoria da Relatividade Geral, a Psicanálise, o Feminismo, o Cientificismo, o
Socialismo, o Comunismo, o Anarquismo, o Existencialismo, a Indústria Cultural,
a invenção do computador, a Engenhara Genética, a Robótica, a chegada à Lua, a
evolução da internet, a nanotecnologia, o “smartphone”, a inteligência
artificial e mais o que os feitos e a imaginação do homem permitirem.
Nesse contexto de diversas revoluções conceituais e técnicas e
das suas naturais contradições, desenvolve-se uma forma de Literatura
umbilicalmente conectada aos horrores e às maravilhas do tempo em que era
produzida, embora haja precursores desde a Antiguidade Clássica para o que se
convencionou chamar de Ficção Científica, sempre especulativa sobre o futuro e
sobre alternativas a respeito de como as relações humanas com a tecnologia e
com horizontes temporais poderiam ser exploradas sob novos olhares, contextos,
leis, expectativas, etc. Enfim, era o delírio da imaginação frente às elaborações
estéticas em certa medida contidas da Literatura tradicional, presa normalmente
ao paradigma da realidade observada pela média das pessoas de uma determinada
época, ao “leitmotiv” ou mesmo ao realismo cru. Evidentemente, há nesse meio a
fantasia que sempre orbitou a invenção literária, pois de certo modo ela
substancia-se já nas mitologias que remetem a tempos imemoriais e que,
submetidas ao crivo da análise laica e científica, são histórias forjadas pela
imaginação do homem impulsionada pela necessidade de acreditar em algo acima do
humano, de explicar os acontecimentos naturais, de dar lógica a eventos como a
morte que sempre estiveram muito acima do entendimento humano, o que inspirou
obras de terror, escapistas ou de pura fantasia como “O vampiro” (1819), de
John Willians Polidori (1795-1821); “Drácula” (1897), de Bram Stoker
(1847-1912); “Senhor dos anéis” (1954), de J.R.R. Tolkien (1892-1973); e o
universo de “Conan” (1932), de Robert E. Howard (1906-1936); respectivamente.
Mais especificamente, a Ficção Científica trata de temas como:
personagens fictícios com poderes sobre-humanos, conferidos normalmente pela
ciência ou por sua origem não terrestre, ou seja, seres com alguma
possibilidade de haver existido ou que possam ainda existir, são exemplos
inteligências artificiais autônomas, ciborgues, robôs, androides, seres
extraterrestres, seres humanos modificados geneticamente, etc.; outras realidades
ou universos paralelos à realidade conhecida pela maioria; visões utópicas ou
distópicas sobre o futuro; viagens no tempo; versões alternativas do passado; seres
humanos com habilidades sobre-humanas associadas à telepatia, telecinese, etc.,
que tenham alguma fundamentação científica, mesmo que especulativa; futuro
comprometido pelo avanço tecnológico ou por inteligências artificiais ou outros
seres que rivalizem ou mesmo dominem o homem; viagens para fora do planeta ou
da galáxia; tecnologias vanguardistas ou inovadoras ou mesmo conceituais como o
laser, o teletransporte e a engenharia genética; cenários pós-apocalípticos; universos
paralelos; etc. Em geral, todas essas possiblidades temáticas, para que possam
ter alguma coerência, mesmo que interna à história, são dependentes de que o
leitor tenha a disponibilidade de ignorar as razões para não crer nos eventos
narrados e nos fatos apresentados, o que é necessário não apenas à ficção
científica como também a gêneros como a fantasia, ou seja, a chamada “suspensão
de descrença”.
No contexto do estabelecimento da Ficção Científica como
gênero literário, especialmente como referência para a cultura pop, destaca-se
a primeira revista dedicada apenas à Ficção Científica, a Amazing Stories, que
tem seu primeiro número publicado em 1926, criada por Hugo Gernsback
(1884-1967), que afirmava ser a ficção científica uma forma de entrelaçar fatos
científicos com entretenimento, visões proféticas e boa leitura. Esse editor
também era escritor e, em 1911, escreveu uma história intitulada “Ralph 124C
41+” que antecipou alguns recursos do “smartphone” como ver e falar com uma
pessoa de forma remota e concomitante.
Derivou desse universo, muito em função da influência da revista
Amazing Stories, um subgênero de ficção científica sem grandes preocupações
científicas ou artísticas, mais focado no entretenimento barato e acessível,
publicado em papel barato de polpa de celulose (“pulp”), chamado Pulp ou Pulp
fiction, mais bem sucedido nos EUA. Tal subgênero está relacionado a
publicações similares anteriores com temas menos afeitos ao científico e mais
associados ao terror, ao erótico, ao horror, que são os folhetins e “penny
dreadfuls” do século XIX. Desse tipo de ficção mais popular e de fácil
compreensão, derivaram também o conceito de super herói, provavelmente.
Inclusive, editoras, como a Marvel Comics no início de sua história, publicavam
histórias “pulp” que rivalizavam com livros de bolso e HQs pela preferência do
público.
Contudo, as origens mais profundas do que se convencionou
conceituar como Ficção Científica remetem à Antiguidade Clássica quando o
escritor Luciano de Samósata (c. 125-c. 181), famoso por suas sátiras à
sociedade romana de então, escreve a narrativa “Uma história verdadeira”,
século II, que relata uma fantástica viagem à Lua em que seres humanos
interagem com vidas extraterrestres. É uma paródia dos relatos da época e anteriores
a ela em que acontecimentos fantásticos e míticos são relatados como verídicos.
Dessa forma, apesar do título que alude à crença nos fatos relatados, na
verdade, trata-se de uma ironia, que coloca em xeque o interesse do autor de
contar com a “suspensão da descrença”, a fim de mais objetivamente
ridicularizar as crenças sobrenaturais e em divindades típicas e comuns às
pessoas do tempo dele.
Mais tarde, no século X, uma das mais antigas narrativas
escritas japonesas, é em alguns sentidos um exemplo de Ficção Científica, já
que, em “O cortador de bambu”, a autora Taketori Monogatari conta a história de
uma garota originária da Lua que é encontrada dentro de um bambu por um casal
que resolve criá-la com o nome de Kaguya-hime, que diz ser de Tsuki-no-Myiako
(“A capital da Lua”). De beleza prodigiosa, ela atrai atenção de muitos
príncipes que não têm sucesso em cortejá-la, até que ela é levada de volta à Lua
pelo que é descrito como uma comitiva celeste a bordo de uma espécie de
espaçonave.
Também se destacam publicações como as histórias do viajante
lunar Duracotus no livro “Somnium”, editado em 1634, de autoria do matemático e
astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630); o livro de 1627 “Nova Atlântida”
de Francis Bacon (1561-1626) que descreve uma cidade extremamente avançada
tecnologicamente, hierarquizada de forma racional e científica e governada por
um grupo de sábios chamado Casa de Salomão, na qual não há fome e nem miséria, pois as doenças são
controladas para garantir que as pessoas vivam bem mais do que o normal, graças
a técnicas oriundas do cruzamento entre religião e ciência; as de Cyrano de
Bergerac (1619-1655), que escreve duas obras de Ficção Científica “História
Cômica dos Estados e Impérios da Lua” e “História Cômica dos Estados e Impérios
do Sol”, as quais descrevem viagens ao Sol e à Lua a partir de formas bastante
inventivas e baseadas em pressupostos razoavelmente científicos; as histórias
com personagens alienígenas, máquinas visionárias ou sociedades alternativas em
obras literárias de Jonathan Swift (1667-1745), “As viagens de Gulliver”, “Uma
Viagem a Brobdingnag” e “Uma Viagem a Laputa, Balnibarbi, Luggnagg,
Glubbdubdrib e Japão” e “Uma Viagem ao país dos Houyhnhnms”; Edgar Allan Poe
(1809-1849), “Contos de ficção científica”, Nathaniel Hawthorne (1804-1864);
Ambrose Bierce (1842-1914); Rudyard Kipling (1865-1936); Fitz James O'Brien
(1826-1862); entre outros.
Contudo, a obra vista normalmente como precursora absoluta do
gênero, não sem algumas problematizações, é “Frankenstein ou o Prometeu Moderno”
(1818) de Mary Wollstonecraft Shelley (1797-1851), que inovou ao usar em uma
história ficcional princípios científicos, ainda que improváveis em muitos
aspectos, mas possíveis em outros, como a eletricidade para “ressuscitar”
alguém sem vida, como é, aliás, possível hoje em casos de paradas cardíacas.
Tal perspectiva, somada à evidente crítica à ciência desenvolvida de forma
alheia a princípios éticos, resultou numa obra que solidamente guarda muitos princípios
do que mais tarde será considerada uma Ficção Científica. Também considerada
por alguns uma obra gótica, tonou-se um clássico desses dois subgêneros sob
qualquer ponto de vista que se escolha adotar.
Sobre essa questão, convém definir o que se convencionou
chamar de Literatura Gótica, com fins de comparação e diferenciação da Ficção
Científica, a saber: uma tradição estética literária surgida do fim do século
XVIII que é caracterizada fundamentalmente por obras em prosa que têm quase
sempre muitas de características como personagens estereotipados – a virgem
inocente, a “femme fatale”, o vilão irascível e odioso, etc.; ambientes
lúgubres - castelos em ruínas, locais desertos, cemitérios, etc.; temas
sobrenaturais e agourentos – profecias e acontecimentos sinistros, sonhos
devastadores ou delirantes, vampiros, monstros, eventos inexplicáveis, etc.; e
sentimentos hiperbólicos – amores impossíveis ou fracassados, ataques de fúria
insana, situações terríveis, consequências temerárias da curiosidade, etc. Enfim,
uma temática que captura o Mal do Século XIX, que envolve numa atmosfera de
incerteza, decadência, tédio, melancolia e futilidade um homem completamente
despreparado para as questões existenciais que esse mal evoca. Diz-se que é uma
resposta aguda e em certa medida espontânea da juventude do início da Era
Vitoriana à crise do racionalismo oriundo do Iluminismo do século XVIII. São
exemplos literários desse contexto: “O castelo de Otranto” (1764) de Horace
Walpole (1717-1797); “Os mistérios do castelo de Udolpho” (1794) de Ann
Radclife (1764-1823). Além de “Drácula” de Bram Stoker, ainda que este seja um
exemplo tardio dessa estética.
Mais tarde, “O último homem”, de 1826, também de Mary Shelley,
ratifica alguns pilares da Ficção Científica com um cenário pós-apocalíptico de
um mundo devastado por uma praga no final do século XXI, além de apontar para
uma tendência reforçada, em especial no pós-Segunda Guerra Mundial, de haver
uma visão pessimista sobre o porvir na maioria dos autores da segunda metade do
século XX. Eis o início tímido do fim do porvir como fonte das maiores
esperanças da humanidade sobre o mundo e sobre si mesma.
Em 1886, Robert Louis Stevenson (1850-1894) publica “O Médico
e o Monstro”, em que se mostra a pesquisa científica, mesmo quando bem
intencionada, como uma causa de complicações que podem ser incontroláveis. O
sucesso estrondoso da novela, logo depois do seu lançamento, mostra o grande
interesse da maioria das pessoas por histórias em que o mal, o feio, o
grotesco, o instinto, etc., dominam a narrativa, o que pode ser um indicativo
da futura obsessão das audiências do cinema e dos leitores por histórias que
antecipem um futuro terrível para a Terra e para a humanidade. Tal constatação denuncia
o misto de fascínio e medo acerca das muitas tecnologias e novidades que
frequentemente eram apresentadas no fim do século XIX.
Um pouco mais tarde, o escritor francês Julio Verne
(1828-1905) tornou ainda mais claros os limites que definem como o gênero
literário Ficção Científica é conhecido contemporaneamente com obras
emblemáticas como “Paris no século XX”, de 1863; “Viagem ao centro da Terra”,
de 1864; “Da Terra à Lua”, de 1865; “Vinte mil léguas submarinas”, de 1870; e “Hector
Servadac”, de 1877. Sua obra, que trata também de temas fantásticos, vislumbra
com indisfarçável otimismo o homem como capaz de evoluir de forma contínua por
meio da tecnologia sem que a ética e as virtudes sejam comprometidas, portanto
é um dos autores mais otimistas sobre o futuro quando se lê grande parte da sua
produção literária.
Outro dos mais importantes autores precursores de Ficção
Científica é H.G. Wells (1866-1946), que é autor do clássico “A guerra dos
mundos”, de 1898, em que se narra uma invasão marciana em que “tripods”,
máquinas com tentáculos que faziam se mover com destreza bólidos que continham
extraterrestres convictos da razoabilidade de conquistar a Terra, são uma
ameaça palpável para a existência da humanidade, o que faz antever mais um
momento em que o futuro deixa de ser uma fronteira de prosperidade e
positividade que ainda será comum na Ficção Científica ao menos até a década de
1960, embora, cada vez mais ao longo do século XX, a sombra de futuros
distópicos, apocalípticos ou pessimistas seja mais onipresente na produção
desse subgênero. Além dessa obra, também são importantíssimos e influentes
trabalhos como “A máquina do tempo” de 1895 e “O homem invisível” de 1897.
Ainda sobre o livro “Guerra dos mundos”, em 1938, o grande
cineasta Orson Welles (1915-1985) causou pânico em uma parte significativa dos
estadunidenses da Costa Leste ao dramatizar como “notícia extraordinária” na
rádio CBS a invasão da Terra por marcianos que ouviam a transmissão conduzida
por ele. O roteiro foi escrito pelo próprio Welles livremente inspirado no livro
de 1898. Tal fato alude a várias questões que envolvem o interesse pela Ficção Científica,
mas especialmente à credulidade ou mesmo vontade de acreditar nela, no além, no
inexplicável, etc., de uma parte expressiva da humanidade.
Um dos mais importantes momentos dessa história ocorre com a
publicação, em 1928, por Philip Francis Nowlan (1888-1940), do clássico “Armageddon
2419”, que apresentou ao público o notório personagem Anthony Rogers (mais
tarde, alterado para Buck Rogers), que era um veterano da Primeira Guerra
Mundial que se intoxica em uma caverna com um gás misterioso responsável por
deixá-lo em animação suspensa por 500 anos, quando a Terra estaria
completamente dominada por orientais, o que pode ser entendido como uma espécie
de apocalipse numa perspectiva do norte-americano.
Outro dos mais relevantes e influentes precursores de cenários
distópicos e pessimistas para o futuro da humanidade foi o escritor inglês
Aldous Huxley (1894-1963), que, em 1932, publica sua obra prima “Admirável mundo
novo”, a qual retrata muitas das preocupações do autor com os grandes dilemas
das décadas de 1920 e 1930, como o respeito à defesa dos direitos do indivíduo,
dos riscos do avanço tecnológico e da repulsa dele a toda forma de
totalitarismo. Essas questões reverberam intensamente no enredo desse clássico
da Literatura mundial que se passa numa Londres em 632 d.F. ou depois de Ford
(sic) em que o personagem Bernard Marx, insatisfeito e crítico do mundo em que
vive, sente-se extremamente desconfortável nessa sociedade por diversas razões,
entre elas destacam-se: ser diferente dos seus pares que cultuam valores de um
passado “selvagem” em relação ao admirável mundo novo, que é uma sociedade
paralela a essa em que a ordem e a felicidade são conseguidas de formas
químicas e tecnológicas, artificiais, portanto. Nela, tudo era controlado por
meio de tecnologias reprodutivas, de formas avançadas de controle psicológico,
de ingestão compulsória de drogas e de hipnopedia. Esta obra gerou duas adaptações
cinematográficas em 1980 e 1998, foi inspiração evidente para Zé Ramalho compor
“Admirável gado novo” em 1979, foi a principal inspiração para a música “Brave
new world” da banda Iron Maiden em 2000, foi também referência para a cantora
Pitty compor “Admirável chip novo” em 2003, o que mostra a força da história de
Huxley e a atualidade dos questionamentos que a obra suscita. Em linhas gerais,
“Admirável mundo novo” denuncia ironica e precocemente os perigos das utopias
que a crença irrefletida no avanço tecnológico e industrial e em modelos
etnocêntricos ou excludentes podem esconder, o que movimentos como o Futurismo
e obras como “O presidente negro” de Monteiro Lobato parecem convictamente
defender.
Já no Pós- Segunda Guerra, Eric Arthur Blair (1903-1950), mais
conhecido como George Orwell, publica o romance distópico “1984” no ano de
1949, que trata de um tempo futuro em que um superestado chamado Oceania, do
qual Grã-Bretanha seria uma mera província, envolvido aparentemente numa guerra
perpétua, que justificou uma vigilância absoluta da vida dos cidadãos desse
Estado, que é, de certa forma, aceita pelas pessoas por um processo de
manipulação histórica, sociológica, etc., que as mantém em constante tensão e
medo. O regime totalitário instalado nesse tempo e lugar entende-se
ironicamente como socialista. Os mecanismos de controle são tantos que até
mesmo uma língua artificial é imposta às pessoas e a maioria das liberdades
individuais são perseguidas e negadas. Todo esse processo tem como símbolo
onipresente a figura do “Grande irmão” que está a todo tempo invadindo a vida
dos cidadãos a fim de reforçar regras, concepções de mundo, limites para o
pensamento, etc. Essa “entidade”, que se quer parece haver certeza sobre a sua
existência, é sustentada por um intenso e bem arquitetado culto à personalidade
que, lamentavelmente, foi muito comum em quase todas as ditaduras de quaisquer
inclinações políticas ao longo do século XX.
Esse livro ganhou uma versão cinematográfica oportunamente em 1984
dirigida por Michael Radford, que é muito fiel à obra original, que também
influenciou muitos outros filmes e mesmo o programa de televisão “Big Brother”,
o qual, paradoxalmente, faz referência a um personagem responsável por ser o
símbolo definitivo de uma sociedade paranoica e controlada, o que vai de
encontro à pretensa proposta do programa: fazer com que as pessoas sob a mira
de dezenas de câmeras e confinados em um pequeno espaço possam ser espontâneas
a ponto de revelarem realmente o que há de mais profundo e, por vezes,
comprometedor na personalidade delas.
Sobre esse contexto, é lamentavelmente farta a produção
teórica que trata desse assunto como um fato a ser pensado e que interfere
diretamente na nossa vida, entre muitas outras obras relacionadas a esse Estado
persecutório e a essa sociedade amedrontada e acomodada, destaca-se “Vigilância
líquida” (2014) de Zygmunt Bauman (1925-2017) filósofo e sociólogo polonês, que
reflete justamente sobre como uma vigilância onipresente instalou-se no
cotidiano das pessoas sem que elas percebessem ou até com a anuência e
participação delas em função da insegurança tanto no mundo real quanto no
virtual e do desinteresse por pensar o que significa o montante enorme de dados
gerados pelas próprias pessoas que é usado para não apenas melhorar a navegação
ou as sugestões que vários serviços em rede podem oferecer, mas também para
vigiar e espionar a vida da ampla maioria dos cidadãos do mundo. É o “Grande Irmão”
assumindo facetas jamais imaginadas mesmo pela mente aguda e inventiva de
Orwell.
Outro grande autor da segunda metade do século XX foi Ray
Bradbury (1920-2012), que lançou em 1953 uma das mais aclamadas obras
distópicas da história da Literatura: “Fahrenheit 451”, em que se narra os
dilemas do bombeiro Guy Montag responsável por queimar livros, como membro de um
órgão censor, pois, nesse tempo, entende-se que o conhecimento e a erudição são
razões para a ruína humana, e não de sua salvação. Nessa sociedade, ter
opiniões que destoem do que a maioria pensa ou sente é não só algo a ser
suprimido, mas erradicado, porque ter criticidade e autonomia intelectual é
tóxico para aquela sociedade já muito longe de qualquer ideal civilizatório.
Esse livro foi escrito num contexto de Guerra Fria e apesar das muitas
interpretações que o associam com a grande fogueira nazista de livros de 1933,
para o autor, na verdade, é uma crítica sobre como a televisão era nociva para
o desenvolvimento de hábitos de leitura na população já na época de seu
lançamento. Foi adaptado em 1966 para o cinema por François Truffaut
(1932-1984) com enorme reconhecimento da crítica e do público. Esse autor
também escreveu “Crônicas marcianas” em 1950, entre muitas outras obras.
Aprofundam essa sensação amarga sobre o futuro, muitos
episódios da série televisiva da CBS “Além da imaginação” (“The twilight zone”)
criada por Rod Sterling (1924-1975), que começou foi exibida de 1959 até 1964,
após esse período outras séries e filmes correlacionados com a franquia também
foram produzidos com relativo sucesso. Os temas dos episódios não eram
exclusivamente associados à Ficção Científica, pois a fantasia, o horror e o
terror também eram frequentemente visitados nos enredos, contudo muitos dos
momentos mais memoráveis dessas histórias, que foram a iniciação para muitas
pessoas no mundo da Ficção Científica, tratam de assuntos ligados a esse
universo como viagens no tempo, guerra nuclear, distopias, controle social,
etc., que, embora mantivessem o extraordinário como motor da narrativa,
frequentemente encerravam metáforas sobre grandes dilemas da época como é
recorrente nesse gênero literário ao menos desde o romance seminal de Mary
Shelley que reverberava as incertezas e o fascínio provocado pelas pesquisas do
cientista italiano Luigi Galvani (1737-1798) sobre os estímulos elétricos que o
cérebro envia para o corpo para que ele se movimente, e no caso de
Frankenstein, para que ele viva. Assim, estudos sobre a Bioeletricidade transitavam
dos laboratórios para as fabulações de mentes criativas e férteis pelo mundo.
Como uma espécie de último suspiro de uma positividade e
otimismo possível sobre o futuro, destaca-se a série clássica “Jornada nas
Estrelas” (“Star trek”) de Gene Roddenberry (1921-1991) exibida entre 1966 e
1969, pois a humanidade é colocada como uma espécie que supera suas diferenças
em prol do bem comum e na vanguarda de uma instituição intergaláctica em que
convivem diversas espécies alienígenas sob a liderança inspiradora e corajosa
de seres humanos como o capitão James Tiberius Kirk, o qual, em uma espécie de
prólogo no início de cada episódio, afirmava a grandeza e a ousadia da
humanidade diante da imensidão do universo desconhecido: “Espaço: a fronteira
final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise. Em sua missão de cinco
anos... para explorar novos mundos... para pesquisar novas vidas... novas
civilizações... audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve.”. A
franquia ao longo do seu desenvolvimento manteve em grande medida essa visão
positiva sobre o futuro e sobre a humanidade nos 79 episódios originais, nas
cerca de sete séries posteriores (com a recém lançada “Star trek: discovery”
produzida pela Netflix) e nos mais de dez filmes.
Ainda que nos últimas películas, a partir de 2009 dirigidos
por J.J. Abrams, mesmo “Jornada nas estrelas” parece ter sido contaminada por
certo pessimismo em função de roteiros sombrios e em que os vilões não são mais
apenas e em princípio espécies alienígenas amorais ou selvagens, mas também humanos
com motivações não necessariamente escusas. É muito importante salientar que o
profundo conhecimento de Roddenberry sobre ciência fez da série clássica uma
antecipadora (ou mesmo estimuladora) de muitas tecnologias que seriam populares
ou possíveis teoricamente no século XXI, são alguns exemplos: o celular, o GPS,
o teletransporte, os tradutores universais, os “scanners” e os exames de imagem
avançados como tomografia.
De todo modo, o preponderante otimismo da série “Jornada nas
Estrelas” desenvolveu-se bem no centro da convulsão de um mundo dominado pela
tensão política e pelo medo da Guerra nuclear. Na série clássica, mais do que
na produção subsequente, fica evidente que os seres humanos são protagonistas
de uma revolução em escala universal, que se inicia com a superação das
diferenças dos seres humanos na própria Terra, que eles próprios, numa nave que
representa o triunfo da vontade e do invento sobre a dificuldade e por
intermédio da liderança resoluta do Capitão James Tiberius Kirk, seriam os
porta-vozes da boa nova mesmo para as galáxias mais distantes: uma paz
duradoura, civilizatória e tolerante em relação à diversidade.
Pouco mais tarde, o inventor e escritor britânico Arthur C.
Clarke (1917-2008) escreve em 1951 o conto “Sentinela da eternidade” ou “A
sentinela” que deu origem ao mote do filme seminal “2001: uma odisseia no espaço”
(1968) dirigido e produzido por Staley Kubrick (1928-1999) e co-escrito por
Clarke. Tanto conto como filme tratam de temas caros à Ficção Científica como a
vida extraterrestre, a inteligência artificial, o avanço tecnológico, o
significado da evolução humana, etc., abordados com enorme interesse pela
verossimilhança e pela extrema qualidade e realismos dos efeitos especiais. O
título, atribuído à Kubrick, inclusive faz referência à obra “Odisseia” (c. IX
a.C.) de Homero, porque permite um paralelo entre a dimensão que o espaço
sideral tem para o homem do século XX com o mar e um mundo ainda em grande
medida desconhecido pelos gregos do tempo de Homero. Mais uma vez, o
desconhecido serve como aviso sobre perigos do futuro ou das realizações
humanas que a abordagem existencialista do conto e do filme sobre o homem
permite entrever. Outros títulos clássicos de Clarke são “Areias de Marte” de
1951; “Encontro com Rama” de 1972; “O martelo de Deus” de 1993; entre muitos
outros.
Contemporâneo de Clarke e tão importante quanto ele para a
Ficção Científica, o escritor e bioquímico russo radicado nos EUA Isaac Asimov
(1920-1992) escreveu mais de 500 livros, a maioria deles de Ficção Científica quase
sempre com o intuito de divulgar princípios científicos. A série “Fundação”, de
1951, é vista como uma das mais importantes obras da desse autor e da Ficção
Científica. Nela, descreve-se um futuro distante em que uma instituição
intitulada Fundação Enciclopédica influencia de várias formas a vida de todos
os seres desse tempo. A série narra o declínio do Império Galáctico, que
decreta a ruína de um tempo de contradições, medos, paradoxos e angústias em
favor de um tempo governado aparentemente pela razão, pela verdade, enfim, pela
incessante busca pela sabedoria. Há uma evidente alusão à queda do Império
Romano nessa obra. O personagem Hari Seldon protagoniza a série por causa da
invenção dele: a Psico-história, que é uma fusão da Sociologia e da Matemática
a fim de se prever o futuro a partir do entendimento de todos os aspectos da
vida social e coletiva do presente por meio de fórmulas matemáticas, que
gerariam estatísticas e probabilidades para controlar a vida e os interesses
das pessoas. Isso acontece a despeito da vontade de Seldon, que é a de evitar o
declínio da civilização humana, representada inicialmente pelo planeta Trantor
na história. Outras obras importantes desse autor são a série “Robôs”, entre
1954-1985; “O fim da eternidade”, 1955; “Nove amanhãs”, 1959; “Viagem fantástica”,
1966, responsável em certo sentido por antecipar a nanotecnologia; “Nêmeses”,
1989; “O homem bicentenário e outras histórias”, 1976; e “Sonhos de robô”, 1986.
Além disso, há entre as centenas de obras de Asimov outros
clássicos absolutos como “Eu, robô” de 1950 em que ele propõe leis para o
desenvolvimento da robótica que são usadas atualmente como um parâmetro ético
para criação de robôs, androides ou consciências artificiais autônomas, a
saber: “Três Leis da Robótica: 1) um robô não pode ferir um humano ou permitir
que um humano sofra algum mal; 2) os robôs devem obedecer às ordens dos
humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira
lei; e 3) um robô deve proteger sua própria existência, desde que não entre em
conflito com as leis anteriores.”. Exemplos como esse mostram o quanto a Ficção
Científica pode e deve ser entendida como uma antecipação muito confiável sobre
o futuro da ciência, ou seja, mais do que um terreno da invenção, é na verdade
um gênero literário de antevisão sobre os dilemas do futuro com o intuito de
que a humanidade não possa ser surpreendida pelos males de suas próprias
criações, ou como o próprio Asimov bem definiu: “O aspecto mais triste da vida
de hoje é que a ciência ganha em conhecimento mais rapidamente que a sociedade
em sabedoria.”.
Outro grande nome desse meio é o escritor estadunidense Robert
Anson Heinlein (1907-1988), que criou obras maiúsculas de Ficção Científica
como “O dia depois de amanhã” de 1941 que trata de uma guerra mundial entre os
Pan-asiáticos e o restante do mundo na qual os EUA são quase arrasados; “Os
filhos de Matusalém” de 1941; “Nave Galileu” de 1947; “O planeta vermelho” de
1949; “Revolta em 2100” de 1953; “Viajantes do espaço” de 1957; “Tropas
estelares” de 1959; “Amor sem limites: as Vidas de Lazarus Long/A história do
futuro” de 1973; entre muitas outras.
Nos anos de 1980, a Ficção Científica seria definitivamente
contaminada por uma visão pessimista e apocalíptica, mas multifacetada, sobre o
futuro. Em especial, dentro de uma estética intitulada cyberpunk, que
apresentava uma visão especialmente decadentista em relação à interação entre o
homem e a tecnologia. Destacam-se nesse tempo, obras de William Gibson (1948-)
como “Neuromancer” (1984), que conta a história de Case, um cowboy (“hacker”,
para a terminologia da atualidade) impedido de sê-lo por meio de uma droga
chamada micotoxina como punição por um crime que cometeu, tal droga impede-o de
se conectar à Matrix por ter danificado seu sistema neural, que ele tenta
desesperadamente curar em clínicas clandestinas sem alterar a sua condição, até
que encontra Molly, o que muda por completo sua perspectiva sobre o ocorrido
com ele. Ainda que Phillip K. Dick (1928-1982) com “Androides sonham com
ovelhas elétricas?”, de 1968, tenha antecipado muito dessa temática quando narra
a história do caçador de androides Rick Deckard que os persegue numa San
Francisco pós-nuclear, embora passe a ter vários dilemas éticos em relação ao
ofício e à sua própria natureza. Ridley Scott (1937-), em 1982, filmou uma
aclamada adaptação do filme chamada “Blade Runner”, que ganhou uma continuação
em 2017 intitulada “Blade Runner 2049” dirigida por Denis Villeneuve (1967-),
aclamado diretor canadense do grande clássico contemporâneo “A chegada” de
2016.
Muitas das questões mais atuais associadas ao temor de uma
guerra nuclear em qualquer escala, aos impactos da devastação ecológica
provocada pelo homem, à relação conflituosa do homem com tecnologias como a
internet e a inteligência artificial, aos perigos da biotecnologia e da
engenharia genética, etc., são amplamente incorporadas pela Ficção Científica
tanto no cinema quanto na Literatura em especial a partir da década de 1980,
justamente quando temas como a ecologia e os limites, riscos e paradoxos da
Modernidade começavam a ser mais debatidos por pensadores como Marshall Berman
(1940-2013) em livros clássicos como “Tudo que é solido desmancha no ar” de
1982 ou Gilles Lipovetsky (1944-) em “O império do efêmero” de 1987.
Em meio a essa extensa e intensa produção, é importante
destacar também os mangás e as HQs em geral, em especial as Graphic Novel, como
também um contexto importante de desenvolvimento desse gênero literário que
encontrou na arte sequencial não uma estética que o empobrece, mas sim que
expande as suas possibilidades artísticas. São destaques dessa já larga
tradição mangás como “Akira” (publicado entre 1982 e 1990 e lançado como anime
em 1988) de Katushiro Otomo(1954-), que antecipa um mundo cyberpunk numa Tóquio
reconstruída depois da Terceira Guerra Mundial em que grandes corporações
substituíram o papel do Estado, a segurança pública é intensamente
militarizada, a juventude é consumida por alienação sem redenção ou saída e
pessoas com poderes telecinéticos podem ameaçar cidades inteiras. Outro ótimo
exemplo é “Ghost in the shell” (publicada entre 1989 e 1991, lançada no cinema
em 2017 com uma produção estadunidense) de Masamune Shirow (1961-), que
descreve um futuro distópico e paradoxal, quando tecnologia avançada convive
com uma sociedade decadente. Essa questão mostra a atualidade mais uma vez das
obras de Ficção Científica, pois, quase de forma diametralmente oposta às
otimistas ideias iluministas sobre o futuro da tecnologia e do homem, essa e tantas
outras histórias mostram o insucesso desse projeto, pois a tecnologia não
libertou totalmente o homem do trabalho degradante ou de outras formas de
desumanização, pois refinou e transformou esses processos de dominação no
sentido de torná-los mais eficientes, sutis e implacáveis.
Entre a década de 1980 e 1990, surgiu um subgênero da Ficção
Científica em que muitos adventos tecnológicos da atualidade chegaram mais cedo
do que de fato se conhece. As histórias são normalmente ambientadas na Era
Vitoriana (século XIX), mas com a presença de tecnologias atuais como o
computador, o avião, etc., normalmente movidas por fontes de energia possíveis
nessa época como o vapor, daí o nome “Steampunk”. É frequentemente comparado ao
universo “cyberpunk”, ainda que tenha normalmente enredos mais leves e
fantasiosos. Entre os precursores aspectos, estéticas e máquinas presentes que
definiram esse subgênero, destacam-se máquinas, personagens, vestimentas, etc.,
dos universos criados por Julio Verne, H. G. Wells, Mark Twain, etc. Nesse
contexto literário, destacam-se “Robur, o conquistador”, de Julio Verne, 1886;
“Olga Romanoff ou a sirene dos céus”, de George Griffith, 1893; “A guerra no
ar”, de H. G. Wells, 1908; “A máquina diferencial”, William Gibson e Bruce Sterling, 1990; “Fullmetal alchemist”,
de Hiromu Arakawa, 2001-2010 etc. No cinema, merecem nota “O enigma da
pirâmide”, 1985; “Van Helsing”, 2004; “As Aventuras do Barão de Munchausen”,
1988; “Steamboy”, 2004; “As loucas aventuras de James West”, 1999; “A liga
extraordinária”, 2003; “Hellboy”, 2004; “A volta do mundo em 80 dias”, 2004; “A
bússola de ouro”, 2007; “Os irmãos Grimm”, 2005; “Sherlock Holmes”, 2009;
“Sucker Punch”, 2011; etc. Nesse subgênero, quanto ao futuro, reproduz-se
normalmente o otimismo típico da segunda metade do século XIX, em função dos
incontáveis inventos que mantinham a esperança sobre dias melhores para a
humanidade em todos os aspectos.
O cinema e a televisão, muitas vezes com a inspiração direta
ou indireta da Literatura e da arte sequencial, produziram nos últimos 100 anos
um infindável número de obras de Ficção Científica que, sobretudo depois da
década de 1970, ganharam um progressivo pessimismo em relação ao futuro em
função de inúmeras questões que deixaram de ser preocupações abstratas para
ganharem concretude em função de um sem número de eventos responsáveis por
inspirar não apenas manchetes de jornal como produções cinematográficas como “Laranja
mecânica”, 1972; “Planeta dos macacos”, 1968; “Blade Runner”, 1982; “Madmax”,
1980; “O exterminador do futuro”, 1986; “Os doze macacos”, 1995; “Matrix”,
1999; “Guerra dos mundos”, 2005; “Independence day”, 1996; “Gattaca”, 1997; “O
show de Truman”, 1998; “Armageddon”, 1998; “Minority report”, 2002; “Brilho
eterno de uma mente sem lembranças”, 2004; “V de vingança”, 2006; “Wall-E”,
2008; “Oblivion”, 2013; “IA”, 2001; “Her”, 2014; “A origem”, 2010; “Elysium”,
2013; “O doador de memórias”, 2014; “No limite do amanhã”, 2014; “Interestelar”,
2014; “The Handmaid’s tale”, 2017; “The Man In The High Castle”, 2015; “Ex-machina”,
2015; “Divergente”, 2014; “Jogos Vorazes”, 2012-15; entre muitos, mas muitos outros filmes que
apresentam ideias sobre o porvir que podem ser estimulantes para ser vistas ou
debatidas, embora também possam ser uma espécie de catarse humana que possa
anestesiar o homem por meio da ficção e do mero escapismo que o afasta dos seus
problemas reais. O dilema, nesse caso, é que não há como escapar da realidade
que, mesmo de forma inadvertida, está imposta à maioria das pessoas de um modo
quase sempre mais sutil e ainda mais bem engendrado do que nas obras de ficção
que muitos pensam ingenuamente tão distantes de um mundo de pós-verdades,
bolhas algorítmicas, dependência tecnológica, implantes robóticos, manipulação
de genoma, internet das coisas, inteligência artificial, etc., tão presentes no
cotidiano da maioria das pessoas.
Em tempo, é muito importante destacar a série “Black Mirror”
(2011-), que é uma espécie de ápice desse processo de “fim” do futuro, ainda
que proponha apocalipses mais sofisticados e sutis e, por isso, mais palpáveis
e prováveis, pois, nas três temporadas, praticamente não há nenhum dos
episódios que seja generoso ao observar o homem em meio a um ambiente
controlado, mediado e influenciado pelas mais diversas e fantásticas
tecnologias que encontram na humanidade vastas possibilidades de fraquezas para
que a frase atribuída ao filósofo canadense Marshall McLuhan (1911-1980) pareça
menos um alerta e mais uma constatação sobre um dos aspectos mais prevalentes
no século XXI sobre as expectativas negativas da maioria das pessoas sobre o
futuro, talvez rivalizando apenas com temas ecológicos e bélicos, a saber: “os
homens criam as ferramentas e as ferramentas recriam os homens.”.
Observação: este artigo foi o texto guia para a palestra dada por mim no segundo Encontro Literário do Cerrado (Elicer).
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