segunda-feira, 2 de outubro de 2017

O fim do futuro: uma breve e atormentada história da Ficção Científica, por Estéfani Martins


Considerado o primeiro filme de ficção científica, a obra “Viagem à Lua” era lançada em um dia como este, na França, no ano de 1902. A produção francesa foi inspirada em dois romances populares de sua época: “Da Terra à Lua”, de Julio Verne, e “Os Primeiros Homens na Lua”, de H. G. Wells. O filme teve roteiro e direção de Georges Méliès, com assistência de seu irmão Gaston Méliès. O filme foi sucesso de público em sua época e foi, provavelmente, além de ser o primeiro filme de ficção científica, o pioneiro sobre seres alienígenas. Uma de suas famosas cenas é a imagem de um foguete no olho do rosto na Lua. Fonte: https://seuhistory.com/hoje-na-historia/lancado-viagem-lua-considerado-primeiro-filme-de-ficcao-cientifica

“Fantasia é o impossível tornado provável. Ficção científica é o improvável tornado possível.”
(Rod Sterling, criador da série “Twilight Zone”)

“O equilíbrio entre ficção e realidade mudou na última década. Seus papéis estão invertidos. Somos dominados pela ficção. O papel do escritor é inventar a realidade.” (J. G. Ballard, autor de “Império do Sol”)

A ficção literária é certamente um bálsamo para muitas das dores e dos males que torturam a humanidade desde os tempos que remetem à aurora das civilizações. Nesse sentido, a literatura serviu de consolo e de escapismo para um número infindável de pessoas ao longo da História, mas a intensificação das angústias provocadas pelo rápido desenvolvimento da tecnologia e das cidades no século XIX impôs novas dificuldades para o gênero humano. Novas curas eram possíveis na mesma velocidade que novas doenças eram descritas; tecnologias eram criadas vertiginosamente para dar conforto para desconfortos criados décadas antes ou para criar necessidades que não existiam; embora, evidentemente, haja um sem número de tecnologias oriundas desse tempo que foram e são muito úteis à humanidade e que mudaram a perspectiva do homem de se relacionar com a sociedade, consigo mesmo e com o outro, são alguns exemplos: a fotografia, a refrigeração artificial e a lâmpada elétrica.

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Nessa época vertiginosa, a arte proveu diversas respostas ou reações a esse novo mundo que se adiantava: as Vanguardas Europeias, o Realismo, o cinema, por exemplo, foram algumas dessas manifestações, todavia a mais afinada interação entre a Arte e esse momento único da história humana, que foi o século XIX, em especial sua última metade, foi a Ficção Científica com seu otimismo de época, o qual apontava para um porvir em que o homem resolveria grande parte dos seus dramas por meio de utopias tecnológicas e sociais em que a dor e o medo eram apenas lembranças ou em que a tecnologia seria o artificie de um novo e muito melhor mundo.
Nesse tempo, também chamado - grosso modo - de Era Vitoriana, mesmo percepções sobre o tempo e a distância foram radicalmente alteradas por intermédio da força do vapor e das mensagens telegráficas, por exemplo, o que é estudado no ótimo “The victorian internet” de 1998, escrito por Tom Standage (1969-). O contexto da evolução estética e temática da Ficção Científica é, assim, marcado pelo signo da revolução, da velocidade implacável para muitos e necessária para uns poucos vanguardistas das mudanças ocorridas em todas as esferas da experiência humana com o novo ideário proposto desde a Revolução Francesa; pela Revolução Industrial que alterou os rumos não só do produzir, como das relações humanas e sociais; pelos novos ares políticos e sociais relativos ao Nacionalismo, à Comuna de Paris, ao Anarquismo, à Belle Époque, etc.; pelos adventos tecnológicos como o motor a vapor, o telégrafo com fio, o rádio, o telefone, a fotografia, o gramofone e o cinema; pelo desenvolvimento de ideias deterministas na ciência; pelo Cientificismo; pelo Evolucionismo; pela disseminação de ideais feministas, socialistas e comunistas; pela urbanização acelerada e excludente; dentre muitos outros acontecimentos e concepções que mudariam não só a forma de o homem ver o mundo, mas também de senti-lo.
Nesse ínterim, a arte em geral, mas especialmente a Literatura, passou a meio de expressão das ideias e sensações mais íntimas, imaginativas e mesmo impossíveis dos artistas, até mesmo as inconfessáveis; tratou do feio, do grotesco, do incomum, do assimétrico, do sonho, do delírio e do futuro de forma inédita pela sua intensidade e frequência; tornou-se de forma inequívoca mercadoria, mesmo quando tentava boicotar o sistema capitalista; impôs-se como antecipadora de tendências, atitudes, vontades, etc.; politizou-se a ponto de servir a regimes como aparato de propaganda ou a ideias revolucionárias e iconoclastas; flertou com o hermetismo, a inacessibilidade e a plurissignificação; etc. Desse emaranhado de novidades, rupturas, contestações, continuísmos, enfim, desse tempo paradoxal e vertiginoso, nasceram os princípios estéticos, científicos, especulativos e ideológicos que mais tarde  seriam identificados com certa naturalidade ao longo do século XX como Literatura de ficção científica, que de forma mais generalista é uma espécie de ficção especulativa.
Mais precisamente, vê-se nesse período a ocorrência de diversos eventos que, de forma direta ou indireta, são inspiração, matéria e alvo das inúmeras obras de Ficção Científica criadas no século XIX de forma mais espontânea e, no século XX, já com uma consciência teórica a respeito dos limites dessa categoria literária. Tais eventos passam a interferir decisivamente na forma do homem pensar, produzir, agir, ver e sentir – mais ainda em alguns homens e mulheres que têm sua imaginação instigada ou mesmo libertada por algumas dessas ideias, ideais, invenções, eventos, etc. - são alguns deles: as Revoluções Industriais, as unificações italiana e alemã, a Comuna de Paris, a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais, a Revolução Russa, o Fascismo e o Nazismo, o Colonialismo Europeu, o Darwinismo, o Liberalismo econômico, o Positivismo, a Teoria da Relatividade Geral, a Psicanálise, o Feminismo, o Cientificismo, o Socialismo, o Comunismo, o Anarquismo, o Existencialismo, a Indústria Cultural, a invenção do computador, a Engenhara Genética, a Robótica, a chegada à Lua, a evolução da internet, a nanotecnologia, o “smartphone”, a inteligência artificial e mais o que os feitos e a imaginação do homem permitirem.
Nesse contexto de diversas revoluções conceituais e técnicas e das suas naturais contradições, desenvolve-se uma forma de Literatura umbilicalmente conectada aos horrores e às maravilhas do tempo em que era produzida, embora haja precursores desde a Antiguidade Clássica para o que se convencionou chamar de Ficção Científica, sempre especulativa sobre o futuro e sobre alternativas a respeito de como as relações humanas com a tecnologia e com horizontes temporais poderiam ser exploradas sob novos olhares, contextos, leis, expectativas, etc. Enfim, era o delírio da imaginação frente às elaborações estéticas em certa medida contidas da Literatura tradicional, presa normalmente ao paradigma da realidade observada pela média das pessoas de uma determinada época, ao “leitmotiv” ou mesmo ao realismo cru. Evidentemente, há nesse meio a fantasia que sempre orbitou a invenção literária, pois de certo modo ela substancia-se já nas mitologias que remetem a tempos imemoriais e que, submetidas ao crivo da análise laica e científica, são histórias forjadas pela imaginação do homem impulsionada pela necessidade de acreditar em algo acima do humano, de explicar os acontecimentos naturais, de dar lógica a eventos como a morte que sempre estiveram muito acima do entendimento humano, o que inspirou obras de terror, escapistas ou de pura fantasia como “O vampiro” (1819), de John Willians Polidori (1795-1821); “Drácula” (1897), de Bram Stoker (1847-1912); “Senhor dos anéis” (1954), de J.R.R. Tolkien (1892-1973); e o universo de “Conan” (1932), de Robert E. Howard (1906-1936); respectivamente.
Mais especificamente, a Ficção Científica trata de temas como: personagens fictícios com poderes sobre-humanos, conferidos normalmente pela ciência ou por sua origem não terrestre, ou seja, seres com alguma possibilidade de haver existido ou que possam ainda existir, são exemplos inteligências artificiais autônomas, ciborgues, robôs, androides, seres extraterrestres, seres humanos modificados geneticamente, etc.; outras realidades ou universos paralelos à realidade conhecida pela maioria; visões utópicas ou distópicas sobre o futuro; viagens no tempo; versões alternativas do passado; seres humanos com habilidades sobre-humanas associadas à telepatia, telecinese, etc., que tenham alguma fundamentação científica, mesmo que especulativa; futuro comprometido pelo avanço tecnológico ou por inteligências artificiais ou outros seres que rivalizem ou mesmo dominem o homem; viagens para fora do planeta ou da galáxia; tecnologias vanguardistas ou inovadoras ou mesmo conceituais como o laser, o teletransporte e a engenharia genética; cenários pós-apocalípticos; universos paralelos; etc. Em geral, todas essas possiblidades temáticas, para que possam ter alguma coerência, mesmo que interna à história, são dependentes de que o leitor tenha a disponibilidade de ignorar as razões para não crer nos eventos narrados e nos fatos apresentados, o que é necessário não apenas à ficção científica como também a gêneros como a fantasia, ou seja, a chamada “suspensão de descrença”.
No contexto do estabelecimento da Ficção Científica como gênero literário, especialmente como referência para a cultura pop, destaca-se a primeira revista dedicada apenas à Ficção Científica, a Amazing Stories, que tem seu primeiro número publicado em 1926, criada por Hugo Gernsback (1884-1967), que afirmava ser a ficção científica uma forma de entrelaçar fatos científicos com entretenimento, visões proféticas e boa leitura. Esse editor também era escritor e, em 1911, escreveu uma história intitulada “Ralph 124C 41+” que antecipou alguns recursos do “smartphone” como ver e falar com uma pessoa de forma remota e concomitante.
Derivou desse universo, muito em função da influência da revista Amazing Stories, um subgênero de ficção científica sem grandes preocupações científicas ou artísticas, mais focado no entretenimento barato e acessível, publicado em papel barato de polpa de celulose (“pulp”), chamado Pulp ou Pulp fiction, mais bem sucedido nos EUA. Tal subgênero está relacionado a publicações similares anteriores com temas menos afeitos ao científico e mais associados ao terror, ao erótico, ao horror, que são os folhetins e “penny dreadfuls” do século XIX. Desse tipo de ficção mais popular e de fácil compreensão, derivaram também o conceito de super herói, provavelmente. Inclusive, editoras, como a Marvel Comics no início de sua história, publicavam histórias “pulp” que rivalizavam com livros de bolso e HQs pela preferência do público.
Contudo, as origens mais profundas do que se convencionou conceituar como Ficção Científica remetem à Antiguidade Clássica quando o escritor Luciano de Samósata (c. 125-c. 181), famoso por suas sátiras à sociedade romana de então, escreve a narrativa “Uma história verdadeira”, século II, que relata uma fantástica viagem à Lua em que seres humanos interagem com vidas extraterrestres. É uma paródia dos relatos da época e anteriores a ela em que acontecimentos fantásticos e míticos são relatados como verídicos. Dessa forma, apesar do título que alude à crença nos fatos relatados, na verdade, trata-se de uma ironia, que coloca em xeque o interesse do autor de contar com a “suspensão da descrença”, a fim de mais objetivamente ridicularizar as crenças sobrenaturais e em divindades típicas e comuns às pessoas do tempo dele.
Mais tarde, no século X, uma das mais antigas narrativas escritas japonesas, é em alguns sentidos um exemplo de Ficção Científica, já que, em “O cortador de bambu”, a autora Taketori Monogatari conta a história de uma garota originária da Lua que é encontrada dentro de um bambu por um casal que resolve criá-la com o nome de Kaguya-hime, que diz ser de Tsuki-no-Myiako (“A capital da Lua”). De beleza prodigiosa, ela atrai atenção de muitos príncipes que não têm sucesso em cortejá-la, até que ela é levada de volta à Lua pelo que é descrito como uma comitiva celeste a bordo de uma espécie de espaçonave.
Também se destacam publicações como as histórias do viajante lunar Duracotus no livro “Somnium”, editado em 1634, de autoria do matemático e astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630); o livro de 1627 “Nova Atlântida” de Francis Bacon (1561-1626) que descreve uma cidade extremamente avançada tecnologicamente, hierarquizada de forma racional e científica e governada por um grupo de sábios chamado Casa de Salomão, na qual  não há fome e nem miséria, pois as doenças são controladas para garantir que as pessoas vivam bem mais do que o normal, graças a técnicas oriundas do cruzamento entre religião e ciência; as de Cyrano de Bergerac (1619-1655), que escreve duas obras de Ficção Científica “História Cômica dos Estados e Impérios da Lua” e “História Cômica dos Estados e Impérios do Sol”, as quais descrevem viagens ao Sol e à Lua a partir de formas bastante inventivas e baseadas em pressupostos razoavelmente científicos; as histórias com personagens alienígenas, máquinas visionárias ou sociedades alternativas em obras literárias de Jonathan Swift (1667-1745), “As viagens de Gulliver”, “Uma Viagem a Brobdingnag” e “Uma Viagem a Laputa, Balnibarbi, Luggnagg, Glubbdubdrib e Japão” e “Uma Viagem ao país dos Houyhnhnms”; Edgar Allan Poe (1809-1849), “Contos de ficção científica”, Nathaniel Hawthorne (1804-1864); Ambrose Bierce (1842-1914); Rudyard Kipling (1865-1936); Fitz James O'Brien (1826-1862); entre outros.
Contudo, a obra vista normalmente como precursora absoluta do gênero, não sem algumas problematizações, é “Frankenstein ou o Prometeu Moderno” (1818) de Mary Wollstonecraft Shelley (1797-1851), que inovou ao usar em uma história ficcional princípios científicos, ainda que improváveis em muitos aspectos, mas possíveis em outros, como a eletricidade para “ressuscitar” alguém sem vida, como é, aliás, possível hoje em casos de paradas cardíacas. Tal perspectiva, somada à evidente crítica à ciência desenvolvida de forma alheia a princípios éticos, resultou numa obra que solidamente guarda muitos princípios do que mais tarde será considerada uma Ficção Científica. Também considerada por alguns uma obra gótica, tonou-se um clássico desses dois subgêneros sob qualquer ponto de vista que se escolha adotar.
Sobre essa questão, convém definir o que se convencionou chamar de Literatura Gótica, com fins de comparação e diferenciação da Ficção Científica, a saber: uma tradição estética literária surgida do fim do século XVIII que é caracterizada fundamentalmente por obras em prosa que têm quase sempre muitas de características como personagens estereotipados – a virgem inocente, a “femme fatale”, o vilão irascível e odioso, etc.; ambientes lúgubres - castelos em ruínas, locais desertos, cemitérios, etc.; temas sobrenaturais e agourentos – profecias e acontecimentos sinistros, sonhos devastadores ou delirantes, vampiros, monstros, eventos inexplicáveis, etc.; e sentimentos hiperbólicos – amores impossíveis ou fracassados, ataques de fúria insana, situações terríveis, consequências temerárias da curiosidade, etc. Enfim, uma temática que captura o Mal do Século XIX, que envolve numa atmosfera de incerteza, decadência, tédio, melancolia e futilidade um homem completamente despreparado para as questões existenciais que esse mal evoca. Diz-se que é uma resposta aguda e em certa medida espontânea da juventude do início da Era Vitoriana à crise do racionalismo oriundo do Iluminismo do século XVIII. São exemplos literários desse contexto: “O castelo de Otranto” (1764) de Horace Walpole (1717-1797); “Os mistérios do castelo de Udolpho” (1794) de Ann Radclife (1764-1823). Além de “Drácula” de Bram Stoker, ainda que este seja um exemplo tardio dessa estética.
Mais tarde, “O último homem”, de 1826, também de Mary Shelley, ratifica alguns pilares da Ficção Científica com um cenário pós-apocalíptico de um mundo devastado por uma praga no final do século XXI, além de apontar para uma tendência reforçada, em especial no pós-Segunda Guerra Mundial, de haver uma visão pessimista sobre o porvir na maioria dos autores da segunda metade do século XX. Eis o início tímido do fim do porvir como fonte das maiores esperanças da humanidade sobre o mundo e sobre si mesma.
Em 1886, Robert Louis Stevenson (1850-1894) publica “O Médico e o Monstro”, em que se mostra a pesquisa científica, mesmo quando bem intencionada, como uma causa de complicações que podem ser incontroláveis. O sucesso estrondoso da novela, logo depois do seu lançamento, mostra o grande interesse da maioria das pessoas por histórias em que o mal, o feio, o grotesco, o instinto, etc., dominam a narrativa, o que pode ser um indicativo da futura obsessão das audiências do cinema e dos leitores por histórias que antecipem um futuro terrível para a Terra e para a humanidade. Tal constatação denuncia o misto de fascínio e medo acerca das muitas tecnologias e novidades que frequentemente eram apresentadas no fim do século XIX.
Um pouco mais tarde, o escritor francês Julio Verne (1828-1905) tornou ainda mais claros os limites que definem como o gênero literário Ficção Científica é conhecido contemporaneamente com obras emblemáticas como “Paris no século XX”, de 1863; “Viagem ao centro da Terra”, de 1864; “Da Terra à Lua”, de 1865; “Vinte mil léguas submarinas”, de 1870; e “Hector Servadac”, de 1877. Sua obra, que trata também de temas fantásticos, vislumbra com indisfarçável otimismo o homem como capaz de evoluir de forma contínua por meio da tecnologia sem que a ética e as virtudes sejam comprometidas, portanto é um dos autores mais otimistas sobre o futuro quando se lê grande parte da sua produção literária.
Outro dos mais importantes autores precursores de Ficção Científica é H.G. Wells (1866-1946), que é autor do clássico “A guerra dos mundos”, de 1898, em que se narra uma invasão marciana em que “tripods”, máquinas com tentáculos que faziam se mover com destreza bólidos que continham extraterrestres convictos da razoabilidade de conquistar a Terra, são uma ameaça palpável para a existência da humanidade, o que faz antever mais um momento em que o futuro deixa de ser uma fronteira de prosperidade e positividade que ainda será comum na Ficção Científica ao menos até a década de 1960, embora, cada vez mais ao longo do século XX, a sombra de futuros distópicos, apocalípticos ou pessimistas seja mais onipresente na produção desse subgênero. Além dessa obra, também são importantíssimos e influentes trabalhos como “A máquina do tempo” de 1895 e “O homem invisível” de 1897.
Ainda sobre o livro “Guerra dos mundos”, em 1938, o grande cineasta Orson Welles (1915-1985) causou pânico em uma parte significativa dos estadunidenses da Costa Leste ao dramatizar como “notícia extraordinária” na rádio CBS a invasão da Terra por marcianos que ouviam a transmissão conduzida por ele. O roteiro foi escrito pelo próprio Welles livremente inspirado no livro de 1898. Tal fato alude a várias questões que envolvem o interesse pela Ficção Científica, mas especialmente à credulidade ou mesmo vontade de acreditar nela, no além, no inexplicável, etc., de uma parte expressiva da humanidade.
Um dos mais importantes momentos dessa história ocorre com a publicação, em 1928, por Philip Francis Nowlan (1888-1940), do clássico “Armageddon 2419”, que apresentou ao público o notório personagem Anthony Rogers (mais tarde, alterado para Buck Rogers), que era um veterano da Primeira Guerra Mundial que se intoxica em uma caverna com um gás misterioso responsável por deixá-lo em animação suspensa por 500 anos, quando a Terra estaria completamente dominada por orientais, o que pode ser entendido como uma espécie de apocalipse numa perspectiva do norte-americano.
Outro dos mais relevantes e influentes precursores de cenários distópicos e pessimistas para o futuro da humanidade foi o escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), que, em 1932, publica sua obra prima “Admirável mundo novo”, a qual retrata muitas das preocupações do autor com os grandes dilemas das décadas de 1920 e 1930, como o respeito à defesa dos direitos do indivíduo, dos riscos do avanço tecnológico e da repulsa dele a toda forma de totalitarismo. Essas questões reverberam intensamente no enredo desse clássico da Literatura mundial que se passa numa Londres em 632 d.F. ou depois de Ford (sic) em que o personagem Bernard Marx, insatisfeito e crítico do mundo em que vive, sente-se extremamente desconfortável nessa sociedade por diversas razões, entre elas destacam-se: ser diferente dos seus pares que cultuam valores de um passado “selvagem” em relação ao admirável mundo novo, que é uma sociedade paralela a essa em que a ordem e a felicidade são conseguidas de formas químicas e tecnológicas, artificiais, portanto. Nela, tudo era controlado por meio de tecnologias reprodutivas, de formas avançadas de controle psicológico, de ingestão compulsória de drogas e de hipnopedia. Esta obra gerou duas adaptações cinematográficas em 1980 e 1998, foi inspiração evidente para Zé Ramalho compor “Admirável gado novo” em 1979, foi a principal inspiração para a música “Brave new world” da banda Iron Maiden em 2000, foi também referência para a cantora Pitty compor “Admirável chip novo” em 2003, o que mostra a força da história de Huxley e a atualidade dos questionamentos que a obra suscita. Em linhas gerais, “Admirável mundo novo” denuncia ironica e precocemente os perigos das utopias que a crença irrefletida no avanço tecnológico e industrial e em modelos etnocêntricos ou excludentes podem esconder, o que movimentos como o Futurismo e obras como “O presidente negro” de Monteiro Lobato parecem convictamente defender.
Já no Pós- Segunda Guerra, Eric Arthur Blair (1903-1950), mais conhecido como George Orwell, publica o romance distópico “1984” no ano de 1949, que trata de um tempo futuro em que um superestado chamado Oceania, do qual Grã-Bretanha seria uma mera província, envolvido aparentemente numa guerra perpétua, que justificou uma vigilância absoluta da vida dos cidadãos desse Estado, que é, de certa forma, aceita pelas pessoas por um processo de manipulação histórica, sociológica, etc., que as mantém em constante tensão e medo. O regime totalitário instalado nesse tempo e lugar entende-se ironicamente como socialista. Os mecanismos de controle são tantos que até mesmo uma língua artificial é imposta às pessoas e a maioria das liberdades individuais são perseguidas e negadas. Todo esse processo tem como símbolo onipresente a figura do “Grande irmão” que está a todo tempo invadindo a vida dos cidadãos a fim de reforçar regras, concepções de mundo, limites para o pensamento, etc. Essa “entidade”, que se quer parece haver certeza sobre a sua existência, é sustentada por um intenso e bem arquitetado culto à personalidade que, lamentavelmente, foi muito comum em quase todas as ditaduras de quaisquer inclinações políticas ao longo do século XX.
Esse livro ganhou uma versão cinematográfica oportunamente em 1984 dirigida por Michael Radford, que é muito fiel à obra original, que também influenciou muitos outros filmes e mesmo o programa de televisão “Big Brother”, o qual, paradoxalmente, faz referência a um personagem responsável por ser o símbolo definitivo de uma sociedade paranoica e controlada, o que vai de encontro à pretensa proposta do programa: fazer com que as pessoas sob a mira de dezenas de câmeras e confinados em um pequeno espaço possam ser espontâneas a ponto de revelarem realmente o que há de mais profundo e, por vezes, comprometedor na personalidade delas.
Sobre esse contexto, é lamentavelmente farta a produção teórica que trata desse assunto como um fato a ser pensado e que interfere diretamente na nossa vida, entre muitas outras obras relacionadas a esse Estado persecutório e a essa sociedade amedrontada e acomodada, destaca-se “Vigilância líquida” (2014) de Zygmunt Bauman (1925-2017) filósofo e sociólogo polonês, que reflete justamente sobre como uma vigilância onipresente instalou-se no cotidiano das pessoas sem que elas percebessem ou até com a anuência e participação delas em função da insegurança tanto no mundo real quanto no virtual e do desinteresse por pensar o que significa o montante enorme de dados gerados pelas próprias pessoas que é usado para não apenas melhorar a navegação ou as sugestões que vários serviços em rede podem oferecer, mas também para vigiar e espionar a vida da ampla maioria dos cidadãos do mundo. É o “Grande Irmão” assumindo facetas jamais imaginadas mesmo pela mente aguda e inventiva de Orwell.
Outro grande autor da segunda metade do século XX foi Ray Bradbury (1920-2012), que lançou em 1953 uma das mais aclamadas obras distópicas da história da Literatura: “Fahrenheit 451”, em que se narra os dilemas do bombeiro Guy Montag responsável por queimar livros, como membro de um órgão censor, pois, nesse tempo, entende-se que o conhecimento e a erudição são razões para a ruína humana, e não de sua salvação. Nessa sociedade, ter opiniões que destoem do que a maioria pensa ou sente é não só algo a ser suprimido, mas erradicado, porque ter criticidade e autonomia intelectual é tóxico para aquela sociedade já muito longe de qualquer ideal civilizatório. Esse livro foi escrito num contexto de Guerra Fria e apesar das muitas interpretações que o associam com a grande fogueira nazista de livros de 1933, para o autor, na verdade, é uma crítica sobre como a televisão era nociva para o desenvolvimento de hábitos de leitura na população já na época de seu lançamento. Foi adaptado em 1966 para o cinema por François Truffaut (1932-1984) com enorme reconhecimento da crítica e do público. Esse autor também escreveu “Crônicas marcianas” em 1950, entre muitas outras obras.
Aprofundam essa sensação amarga sobre o futuro, muitos episódios da série televisiva da CBS “Além da imaginação” (“The twilight zone”) criada por Rod Sterling (1924-1975), que começou foi exibida de 1959 até 1964, após esse período outras séries e filmes correlacionados com a franquia também foram produzidos com relativo sucesso. Os temas dos episódios não eram exclusivamente associados à Ficção Científica, pois a fantasia, o horror e o terror também eram frequentemente visitados nos enredos, contudo muitos dos momentos mais memoráveis dessas histórias, que foram a iniciação para muitas pessoas no mundo da Ficção Científica, tratam de assuntos ligados a esse universo como viagens no tempo, guerra nuclear, distopias, controle social, etc., que, embora mantivessem o extraordinário como motor da narrativa, frequentemente encerravam metáforas sobre grandes dilemas da época como é recorrente nesse gênero literário ao menos desde o romance seminal de Mary Shelley que reverberava as incertezas e o fascínio provocado pelas pesquisas do cientista italiano Luigi Galvani (1737-1798) sobre os estímulos elétricos que o cérebro envia para o corpo para que ele se movimente, e no caso de Frankenstein, para que ele viva. Assim, estudos sobre a Bioeletricidade transitavam dos laboratórios para as fabulações de mentes criativas e férteis pelo mundo.
Como uma espécie de último suspiro de uma positividade e otimismo possível sobre o futuro, destaca-se a série clássica “Jornada nas Estrelas” (“Star trek”) de Gene Roddenberry (1921-1991) exibida entre 1966 e 1969, pois a humanidade é colocada como uma espécie que supera suas diferenças em prol do bem comum e na vanguarda de uma instituição intergaláctica em que convivem diversas espécies alienígenas sob a liderança inspiradora e corajosa de seres humanos como o capitão James Tiberius Kirk, o qual, em uma espécie de prólogo no início de cada episódio, afirmava a grandeza e a ousadia da humanidade diante da imensidão do universo desconhecido: “Espaço: a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise. Em sua missão de cinco anos... para explorar novos mundos... para pesquisar novas vidas... novas civilizações... audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve.”. A franquia ao longo do seu desenvolvimento manteve em grande medida essa visão positiva sobre o futuro e sobre a humanidade nos 79 episódios originais, nas cerca de sete séries posteriores (com a recém lançada “Star trek: discovery” produzida pela Netflix) e nos mais de dez filmes.
Ainda que nos últimas películas, a partir de 2009 dirigidos por J.J. Abrams, mesmo “Jornada nas estrelas” parece ter sido contaminada por certo pessimismo em função de roteiros sombrios e em que os vilões não são mais apenas e em princípio espécies alienígenas amorais ou selvagens, mas também humanos com motivações não necessariamente escusas. É muito importante salientar que o profundo conhecimento de Roddenberry sobre ciência fez da série clássica uma antecipadora (ou mesmo estimuladora) de muitas tecnologias que seriam populares ou possíveis teoricamente no século XXI, são alguns exemplos: o celular, o GPS, o teletransporte, os tradutores universais, os “scanners” e os exames de imagem avançados como tomografia.
De todo modo, o preponderante otimismo da série “Jornada nas Estrelas” desenvolveu-se bem no centro da convulsão de um mundo dominado pela tensão política e pelo medo da Guerra nuclear. Na série clássica, mais do que na produção subsequente, fica evidente que os seres humanos são protagonistas de uma revolução em escala universal, que se inicia com a superação das diferenças dos seres humanos na própria Terra, que eles próprios, numa nave que representa o triunfo da vontade e do invento sobre a dificuldade e por intermédio da liderança resoluta do Capitão James Tiberius Kirk, seriam os porta-vozes da boa nova mesmo para as galáxias mais distantes: uma paz duradoura, civilizatória e tolerante em relação à diversidade.
Pouco mais tarde, o inventor e escritor britânico Arthur C. Clarke (1917-2008) escreve em 1951 o conto “Sentinela da eternidade” ou “A sentinela” que deu origem ao mote do filme seminal “2001: uma odisseia no espaço” (1968) dirigido e produzido por Staley Kubrick (1928-1999) e co-escrito por Clarke. Tanto conto como filme tratam de temas caros à Ficção Científica como a vida extraterrestre, a inteligência artificial, o avanço tecnológico, o significado da evolução humana, etc., abordados com enorme interesse pela verossimilhança e pela extrema qualidade e realismos dos efeitos especiais. O título, atribuído à Kubrick, inclusive faz referência à obra “Odisseia” (c. IX a.C.) de Homero, porque permite um paralelo entre a dimensão que o espaço sideral tem para o homem do século XX com o mar e um mundo ainda em grande medida desconhecido pelos gregos do tempo de Homero. Mais uma vez, o desconhecido serve como aviso sobre perigos do futuro ou das realizações humanas que a abordagem existencialista do conto e do filme sobre o homem permite entrever. Outros títulos clássicos de Clarke são “Areias de Marte” de 1951; “Encontro com Rama” de 1972; “O martelo de Deus” de 1993; entre muitos outros.
Contemporâneo de Clarke e tão importante quanto ele para a Ficção Científica, o escritor e bioquímico russo radicado nos EUA Isaac Asimov (1920-1992) escreveu mais de 500 livros, a maioria deles de Ficção Científica quase sempre com o intuito de divulgar princípios científicos. A série “Fundação”, de 1951, é vista como uma das mais importantes obras da desse autor e da Ficção Científica. Nela, descreve-se um futuro distante em que uma instituição intitulada Fundação Enciclopédica influencia de várias formas a vida de todos os seres desse tempo. A série narra o declínio do Império Galáctico, que decreta a ruína de um tempo de contradições, medos, paradoxos e angústias em favor de um tempo governado aparentemente pela razão, pela verdade, enfim, pela incessante busca pela sabedoria. Há uma evidente alusão à queda do Império Romano nessa obra. O personagem Hari Seldon protagoniza a série por causa da invenção dele: a Psico-história, que é uma fusão da Sociologia e da Matemática a fim de se prever o futuro a partir do entendimento de todos os aspectos da vida social e coletiva do presente por meio de fórmulas matemáticas, que gerariam estatísticas e probabilidades para controlar a vida e os interesses das pessoas. Isso acontece a despeito da vontade de Seldon, que é a de evitar o declínio da civilização humana, representada inicialmente pelo planeta Trantor na história. Outras obras importantes desse autor são a série “Robôs”, entre 1954-1985; “O fim da eternidade”, 1955; “Nove amanhãs”, 1959; “Viagem fantástica”, 1966, responsável em certo sentido por antecipar a nanotecnologia; “Nêmeses”, 1989; “O homem bicentenário e outras histórias”, 1976; e “Sonhos de robô”, 1986.
Além disso, há entre as centenas de obras de Asimov outros clássicos absolutos como “Eu, robô” de 1950 em que ele propõe leis para o desenvolvimento da robótica que são usadas atualmente como um parâmetro ético para criação de robôs, androides ou consciências artificiais autônomas, a saber: “Três Leis da Robótica: 1) um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal; 2) os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei; e 3) um robô deve proteger sua própria existência, desde que não entre em conflito com as leis anteriores.”. Exemplos como esse mostram o quanto a Ficção Científica pode e deve ser entendida como uma antecipação muito confiável sobre o futuro da ciência, ou seja, mais do que um terreno da invenção, é na verdade um gênero literário de antevisão sobre os dilemas do futuro com o intuito de que a humanidade não possa ser surpreendida pelos males de suas próprias criações, ou como o próprio Asimov bem definiu: “O aspecto mais triste da vida de hoje é que a ciência ganha em conhecimento mais rapidamente que a sociedade em sabedoria.”.
Outro grande nome desse meio é o escritor estadunidense Robert Anson Heinlein (1907-1988), que criou obras maiúsculas de Ficção Científica como “O dia depois de amanhã” de 1941 que trata de uma guerra mundial entre os Pan-asiáticos e o restante do mundo na qual os EUA são quase arrasados; “Os filhos de Matusalém” de 1941; “Nave Galileu” de 1947; “O planeta vermelho” de 1949; “Revolta em 2100” de 1953; “Viajantes do espaço” de 1957; “Tropas estelares” de 1959; “Amor sem limites: as Vidas de Lazarus Long/A história do futuro” de 1973; entre muitas outras.
Nos anos de 1980, a Ficção Científica seria definitivamente contaminada por uma visão pessimista e apocalíptica, mas multifacetada, sobre o futuro. Em especial, dentro de uma estética intitulada cyberpunk, que apresentava uma visão especialmente decadentista em relação à interação entre o homem e a tecnologia. Destacam-se nesse tempo, obras de William Gibson (1948-) como “Neuromancer” (1984), que conta a história de Case, um cowboy (“hacker”, para a terminologia da atualidade) impedido de sê-lo por meio de uma droga chamada micotoxina como punição por um crime que cometeu, tal droga impede-o de se conectar à Matrix por ter danificado seu sistema neural, que ele tenta desesperadamente curar em clínicas clandestinas sem alterar a sua condição, até que encontra Molly, o que muda por completo sua perspectiva sobre o ocorrido com ele. Ainda que Phillip K. Dick (1928-1982) com “Androides sonham com ovelhas elétricas?”, de 1968, tenha antecipado muito dessa temática quando narra a história do caçador de androides Rick Deckard que os persegue numa San Francisco pós-nuclear, embora passe a ter vários dilemas éticos em relação ao ofício e à sua própria natureza. Ridley Scott (1937-), em 1982, filmou uma aclamada adaptação do filme chamada “Blade Runner”, que ganhou uma continuação em 2017 intitulada “Blade Runner 2049” dirigida por Denis Villeneuve (1967-), aclamado diretor canadense do grande clássico contemporâneo “A chegada” de 2016.
Muitas das questões mais atuais associadas ao temor de uma guerra nuclear em qualquer escala, aos impactos da devastação ecológica provocada pelo homem, à relação conflituosa do homem com tecnologias como a internet e a inteligência artificial, aos perigos da biotecnologia e da engenharia genética, etc., são amplamente incorporadas pela Ficção Científica tanto no cinema quanto na Literatura em especial a partir da década de 1980, justamente quando temas como a ecologia e os limites, riscos e paradoxos da Modernidade começavam a ser mais debatidos por pensadores como Marshall Berman (1940-2013) em livros clássicos como “Tudo que é solido desmancha no ar” de 1982 ou Gilles Lipovetsky (1944-) em “O império do efêmero” de 1987.
Em meio a essa extensa e intensa produção, é importante destacar também os mangás e as HQs em geral, em especial as Graphic Novel, como também um contexto importante de desenvolvimento desse gênero literário que encontrou na arte sequencial não uma estética que o empobrece, mas sim que expande as suas possibilidades artísticas. São destaques dessa já larga tradição mangás como “Akira” (publicado entre 1982 e 1990 e lançado como anime em 1988) de Katushiro Otomo(1954-), que antecipa um mundo cyberpunk numa Tóquio reconstruída depois da Terceira Guerra Mundial em que grandes corporações substituíram o papel do Estado, a segurança pública é intensamente militarizada, a juventude é consumida por alienação sem redenção ou saída e pessoas com poderes telecinéticos podem ameaçar cidades inteiras. Outro ótimo exemplo é “Ghost in the shell” (publicada entre 1989 e 1991, lançada no cinema em 2017 com uma produção estadunidense) de Masamune Shirow (1961-), que descreve um futuro distópico e paradoxal, quando tecnologia avançada convive com uma sociedade decadente. Essa questão mostra a atualidade mais uma vez das obras de Ficção Científica, pois, quase de forma diametralmente oposta às otimistas ideias iluministas sobre o futuro da tecnologia e do homem, essa e tantas outras histórias mostram o insucesso desse projeto, pois a tecnologia não libertou totalmente o homem do trabalho degradante ou de outras formas de desumanização, pois refinou e transformou esses processos de dominação no sentido de torná-los mais eficientes, sutis e implacáveis.
Entre a década de 1980 e 1990, surgiu um subgênero da Ficção Científica em que muitos adventos tecnológicos da atualidade chegaram mais cedo do que de fato se conhece. As histórias são normalmente ambientadas na Era Vitoriana (século XIX), mas com a presença de tecnologias atuais como o computador, o avião, etc., normalmente movidas por fontes de energia possíveis nessa época como o vapor, daí o nome “Steampunk”. É frequentemente comparado ao universo “cyberpunk”, ainda que tenha normalmente enredos mais leves e fantasiosos. Entre os precursores aspectos, estéticas e máquinas presentes que definiram esse subgênero, destacam-se máquinas, personagens, vestimentas, etc., dos universos criados por Julio Verne, H. G. Wells, Mark Twain, etc. Nesse contexto literário, destacam-se “Robur, o conquistador”, de Julio Verne, 1886; “Olga Romanoff ou a sirene dos céus”, de George Griffith, 1893; “A guerra no ar”, de H. G. Wells, 1908; “A máquina diferencial”,       William Gibson e Bruce Sterling, 1990; “Fullmetal alchemist”, de Hiromu Arakawa, 2001-2010 etc. No cinema, merecem nota “O enigma da pirâmide”, 1985; “Van Helsing”, 2004; “As Aventuras do Barão de Munchausen”, 1988; “Steamboy”, 2004; “As loucas aventuras de James West”, 1999; “A liga extraordinária”, 2003; “Hellboy”, 2004; “A volta do mundo em 80 dias”, 2004; “A bússola de ouro”, 2007; “Os irmãos Grimm”, 2005; “Sherlock Holmes”, 2009; “Sucker Punch”, 2011; etc. Nesse subgênero, quanto ao futuro, reproduz-se normalmente o otimismo típico da segunda metade do século XIX, em função dos incontáveis inventos que mantinham a esperança sobre dias melhores para a humanidade em todos os aspectos.
O cinema e a televisão, muitas vezes com a inspiração direta ou indireta da Literatura e da arte sequencial, produziram nos últimos 100 anos um infindável número de obras de Ficção Científica que, sobretudo depois da década de 1970, ganharam um progressivo pessimismo em relação ao futuro em função de inúmeras questões que deixaram de ser preocupações abstratas para ganharem concretude em função de um sem número de eventos responsáveis por inspirar não apenas manchetes de jornal como produções cinematográficas como “Laranja mecânica”, 1972; “Planeta dos macacos”, 1968; “Blade Runner”, 1982; “Madmax”, 1980; “O exterminador do futuro”, 1986; “Os doze macacos”, 1995; “Matrix”, 1999; “Guerra dos mundos”, 2005; “Independence day”, 1996; “Gattaca”, 1997; “O show de Truman”, 1998; “Armageddon”, 1998; “Minority report”, 2002; “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, 2004; “V de vingança”, 2006; “Wall-E”, 2008; “Oblivion”, 2013; “IA”, 2001; “Her”, 2014; “A origem”, 2010; “Elysium”, 2013; “O doador de memórias”, 2014; “No limite do amanhã”, 2014; “Interestelar”, 2014; “The Handmaid’s tale”, 2017; “The Man In The High Castle”, 2015; “Ex-machina”, 2015; “Divergente”, 2014; “Jogos Vorazes”, 2012-15;  entre muitos, mas muitos outros filmes que apresentam ideias sobre o porvir que podem ser estimulantes para ser vistas ou debatidas, embora também possam ser uma espécie de catarse humana que possa anestesiar o homem por meio da ficção e do mero escapismo que o afasta dos seus problemas reais. O dilema, nesse caso, é que não há como escapar da realidade que, mesmo de forma inadvertida, está imposta à maioria das pessoas de um modo quase sempre mais sutil e ainda mais bem engendrado do que nas obras de ficção que muitos pensam ingenuamente tão distantes de um mundo de pós-verdades, bolhas algorítmicas, dependência tecnológica, implantes robóticos, manipulação de genoma, internet das coisas, inteligência artificial, etc., tão presentes no cotidiano da maioria das pessoas.
Em tempo, é muito importante destacar a série “Black Mirror” (2011-), que é uma espécie de ápice desse processo de “fim” do futuro, ainda que proponha apocalipses mais sofisticados e sutis e, por isso, mais palpáveis e prováveis, pois, nas três temporadas, praticamente não há nenhum dos episódios que seja generoso ao observar o homem em meio a um ambiente controlado, mediado e influenciado pelas mais diversas e fantásticas tecnologias que encontram na humanidade vastas possibilidades de fraquezas para que a frase atribuída ao filósofo canadense Marshall McLuhan (1911-1980) pareça menos um alerta e mais uma constatação sobre um dos aspectos mais prevalentes no século XXI sobre as expectativas negativas da maioria das pessoas sobre o futuro, talvez rivalizando apenas com temas ecológicos e bélicos, a saber: “os homens criam as ferramentas e as ferramentas recriam os homens.”.

Observação: este artigo foi o texto guia para a palestra dada por mim no segundo Encontro Literário do Cerrado (Elicer).

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