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Gêneros narrativos (Relato)
Gêneros narrativos (Relato)
“A narrativa está
presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades.”
(Roland Barthes)
“No combate entre um
texto apaixonante e seu leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto o
conto deve ganhar por nocaute.”
(Julio Cortázar)
O ato de narrar remonta a momentos
iniciais de nosso processo de formação como espécie, o que é confirmado por
pinturas rupestres que claramente apontam para sequências de acontecimentos que
respeitam a temporalidade e a sucessão de fatos típicas do texto narrativo.
Nesse tempo, em que pinturas de diferentes estágios de caçadas ou rituais foram
feitas em paredes de cavernas como narrativas visuais ou mesmo pode-se
especular sobre o começo do processo de comunicação oral, para além de
grunhidos e sons sem associação clara, provavelmente está a aurora dos
textos narrativos como gênero textual. Além disso, para todas as comunidades
ágrafas, essas formas de narrar têm papel central na construção dessas
sociedades ainda na atualidade, até porque eram e são uma forma razoavelmente
confiável de preservar o conhecimento produzido por essas comunidades.
Há muitas formas de narrar: da ancestralidade do folclore e das narrativas orais até o dinamismo e a velocidade dos textos produzidos em função do advento da internet. Há ainda histórias narradas a partir de fatos e acontecimentos verídicos ou associados a experiências reais ou aquelas que são produto da imaginação criativa e da invenção despreocupadas muitas vezes com qualquer paradigma da chamada realidade, ou podem ainda ser fruto da união dessas duas formas.
Por meio dessas características formais, estilísticas e de conteúdo, foram sendo fixadas formas de narrar que, a seguir, serão discutidas separadamente, embora sejam notórias as dificuldades teóricas para a realização plena desse objetivo, em função das fronteiras por vezes pouco perceptíveis ou mesmo diluídas entre os diferentes textos compreendidos como narrativos.
Há muitas formas de narrar: da ancestralidade do folclore e das narrativas orais até o dinamismo e a velocidade dos textos produzidos em função do advento da internet. Há ainda histórias narradas a partir de fatos e acontecimentos verídicos ou associados a experiências reais ou aquelas que são produto da imaginação criativa e da invenção despreocupadas muitas vezes com qualquer paradigma da chamada realidade, ou podem ainda ser fruto da união dessas duas formas.
Por meio dessas características formais, estilísticas e de conteúdo, foram sendo fixadas formas de narrar que, a seguir, serão discutidas separadamente, embora sejam notórias as dificuldades teóricas para a realização plena desse objetivo, em função das fronteiras por vezes pouco perceptíveis ou mesmo diluídas entre os diferentes textos compreendidos como narrativos.
Elementos da narrativa
Como principio fundador das
narrativas, além da temporalidade, devem ser destacados os elementos que as
compõe e a estrutura a qual esse gênero textual deve minimamente respeitar. Entretanto,
embora esses “parâmetros” tenham sido revistos ou subvertidos por muitos
autores especialmente no século XX, ainda serve como um importante referencial
para produtores, leitores e analistas do discurso narrativo.
São elementos da narrativa o enredo, os personagens, o narrador, o espaço e o tempo. Eles são em alguma medida fundamentais para se tecer o sequenciamento de eventos, o desenvolvimento de ações e a participação dos personagens, que são imprescindíveis para se constituir um texto narrativo.
O enredo é o encadeamento de episódios que constrói a narrativa, ou mesmo a forma de fazê-lo, com o objetivo de possibilitar geralmente o desenvolvimento de um conflito que será a razão de existência de uma narrativa. O conflito pode ocorrer entre pessoas, como no caso do romance “Poderoso Chefão”, de Mario Puzzo; entre os rigores da natureza e o homem, que é muito bem ilustrado em “Vidas secas” de Graciliano Ramos; entre o Estado e o cidadão, como no caso da obra “O processo” de Franz Kafka; entre a pessoa e seu íntimo, como em muitas narrativas de Clarice Lispector; etc. O enredo pode ser linear quando se respeita a ideia de passagem mais cronológica ou mesmo física do tempo, como são os casos de grande parte dos filmes, em especial anteriores a década de 1970, e da Literatura anterior ao século XIX; ou pode ser não-linear como são os casos de narrativas de filmes como “Efeito borboleta”, “Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças”, “Pulp Fiction”, entre tantos outros exemplos em que digressões temporais, arranjos não cronológicos dos eventos da narrativa, inversão da estrutura narrativa, etc., são responsáveis por emprestar uma sensação não natural ou cronológica no tempo interior à narrativa.
O espaço ou ambiente é o local ou os locais onde se passa a narrativa, por isso pode ser descrito de forma detalhada ou displicente de acordo com as intenções do autor. Em algumas situações, pode ser mesmo um personagem em função da forma como interage e define comportamentos e escolhas dos outros personagens, como são os casos do planeta Duna, no romance homônimo de Frank Herbert; do cortiço, de Aluísio de Azevedo; do Ateneu, de Raul Pompéia; do sul dos Estados Unidos da série "True detective", etc. O espaço pode ser físico quando ele é real e concebível de acordo com a experiência humana partilhada desde que temos informações que permitam reconstruções fidedignas desses ambientes como local em que se passará uma narrativa, ou pode ser psicológico, quando é produto da criatividade parcial ou totalmente desconectada do que é entendido como realidade pela maioria das pessoas, é, portanto, um espaço de fantasia, de absoluta ficção e não reconhecível pela experiência sensorial das pessoas.
São elementos da narrativa o enredo, os personagens, o narrador, o espaço e o tempo. Eles são em alguma medida fundamentais para se tecer o sequenciamento de eventos, o desenvolvimento de ações e a participação dos personagens, que são imprescindíveis para se constituir um texto narrativo.
O enredo é o encadeamento de episódios que constrói a narrativa, ou mesmo a forma de fazê-lo, com o objetivo de possibilitar geralmente o desenvolvimento de um conflito que será a razão de existência de uma narrativa. O conflito pode ocorrer entre pessoas, como no caso do romance “Poderoso Chefão”, de Mario Puzzo; entre os rigores da natureza e o homem, que é muito bem ilustrado em “Vidas secas” de Graciliano Ramos; entre o Estado e o cidadão, como no caso da obra “O processo” de Franz Kafka; entre a pessoa e seu íntimo, como em muitas narrativas de Clarice Lispector; etc. O enredo pode ser linear quando se respeita a ideia de passagem mais cronológica ou mesmo física do tempo, como são os casos de grande parte dos filmes, em especial anteriores a década de 1970, e da Literatura anterior ao século XIX; ou pode ser não-linear como são os casos de narrativas de filmes como “Efeito borboleta”, “Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças”, “Pulp Fiction”, entre tantos outros exemplos em que digressões temporais, arranjos não cronológicos dos eventos da narrativa, inversão da estrutura narrativa, etc., são responsáveis por emprestar uma sensação não natural ou cronológica no tempo interior à narrativa.
O espaço ou ambiente é o local ou os locais onde se passa a narrativa, por isso pode ser descrito de forma detalhada ou displicente de acordo com as intenções do autor. Em algumas situações, pode ser mesmo um personagem em função da forma como interage e define comportamentos e escolhas dos outros personagens, como são os casos do planeta Duna, no romance homônimo de Frank Herbert; do cortiço, de Aluísio de Azevedo; do Ateneu, de Raul Pompéia; do sul dos Estados Unidos da série "True detective", etc. O espaço pode ser físico quando ele é real e concebível de acordo com a experiência humana partilhada desde que temos informações que permitam reconstruções fidedignas desses ambientes como local em que se passará uma narrativa, ou pode ser psicológico, quando é produto da criatividade parcial ou totalmente desconectada do que é entendido como realidade pela maioria das pessoas, é, portanto, um espaço de fantasia, de absoluta ficção e não reconhecível pela experiência sensorial das pessoas.
O tempo é outro elemento crucial em narrativas, até mesmo pelo tipo de temporalidade imprescindível para esse tipo de texto. Pode ser usado como forma de
denunciar transformações no espaço da narrativa ou nos personagens, o que é
perceptível nos filmes “Era uma vez na
América” e “O curioso caso de
Benjamim Button” respectivamente; como mecanismo de controle ou mesmo
facilitador do entendimento a respeito da ordem em que os episódios ocorrem na narrativa, o que é muito perceptível na série “24h” ou
no filme “Matrix”. Pode ser
grosseiramente, quanto a sua abordagem, dividido em dois tipos: tempo cronológico, que é
aquele que pode ser medido, mensurado e percebido em acordo com a percepção
média das pessoas a respeito de sua passagem; ou psicológico, quando admite-se
a interferência de ponto de vista particular na construção ou mesmo na
percepção da passagem do tempo, o que faz com que uma narrativa longa possa compreender
um recorte temporal de um dia ou menos; ou ainda de não ser possível precisar
ou quantificar o tempo passado ao longo da história.
Os personagens são os responsáveis pela existência do enredo pelo fato
de ser nas relações entre eles que o conflito, o drama ou a trama é
desenvolvido num espaço e num tempo em que se enredam histórias contadas por um
narrador, que é o responsável por trazer à “vida” novamente aqueles personagens
históricos já mortos, como é o caso de Sarah Bernhardt e Dom Pedro II no livro
“O xangô de Baker Street”, ou mesmo
dar “vida” a personagens produtos da ficção como o Bento de “Dom Casmurro”. Personagens podem ser
descritos de forma detalhada e criteriosa já no início da narrativa ou podem
ser descobertos ao longo do texto muito mais pelas suas ações e pela forma como
são vistos por outros personagens do que por uma descrição objetivo do autor. Ainda sobre esse elemento da narrativa, personagens
podem, quanto à relevância e a função ocupada em uma história, ser
protagonistas, antagonistas ou coadjuvantes. Essa classificação
tradicionalmente constrói-se sob dois aspectos: o maniqueísmo e a importância.
Assim o protagonista ou o herói seria a representação do bem na narrativa, e o
mal seria representado pelo antagonista ou vilão, ambos tratados como os
personagens mais importantes dela. Por meio disso, são definidos os
coadjuvantes ou personagens secundários como aqueles de importância variada numa narrativa, mas de
relevância sempre menor do que os que a protagonizam. Nos últimos séculos e
mais intensamente do século XIX em diante, a ideia de herói e vilão foi sendo,
em muitas obras, subvertida em favor da construção de personagens mais humanos.
Tais novos ares foram decisivos em particular para a figura do protagonista,
que de herói passou muitas vezes a anti-herói, não porque vilão, mas porque
humano, como os leitores, portanto há um palco onde mal e bem digladiam, onde
virtudes e defeitos revezam-se ou mesclam-se, isto é, essa outra configuração
do protagonismo narrativo rompe com o cânone clássico que associa o
protagonista ou herói à beleza, à força física e espiritual, à perfeição, à
grande capacidade de solução de conflitos, à liderança social e às virtudes
éticas unicamente. Como decorrência disso, foi constituído esse tipo de personagem baseado
numa conjunção de elementos que muito o aproximam das pessoas comuns ou mesmo
incomuns, mas, sobretudo, reais, que se fazem anti-heróis não pela maldade, mas
pela fraqueza diante das tentações, dos desejos, dos medos, etc. Logo,
anti-heróis são construídos por força da humanidade e da insignificância de um
Gregor Samsa no livro “A metamorfose” de Franz Kafka; da loucura sábia e lúdica
de um Geraldo Viramundo, personagem principal de “O Grande Mentecapto” de
Fernando Sabino; da crueza e da honestidade moral dos ex-defuntos de “Incidente
em Antares” de Érico Veríssimo; da insensibilidade e frieza de Michael Corleone
no clássico “O poderoso chefão” de Mário Puzzo; do desregramento e do
revisionismo de Rémy Girard, o já clássico protagonista do filme “Invasões
bárbaras”; etc. Personagens podem ainda ser vistos como planos quando nada ou pouco mudam ao longo de uma narrativa ou redondas quando sofrem alterações significativas na sua forma de proceder, ser ou pensar ao longo da história.
O foco narrativo pode ser
compreendido de forma simples e didática como uma perspectiva assumida pelo
narrador para apreciar, acompanhar, descrever, enfim, narrar. Uma
história pode ser contada em primeira pessoa do discurso, o que confere ao
narrador o papel também de personagem do relato que conta. Dessa forma, como
protagonista ou coadjuvante da história na qual ele está envolvido, narra sob
uma perspectiva algo privilegiada, que é a de contar uma história da qual fez parte. Por outro lado, uma narração pode ser feita em terceira pessoa do
discurso, quando o narrador assume uma perspectiva de quem não participa da
história. O narrador em terceira pessoa pode ser observador ou
onipresente, quando narra uma história de acordo com as limitações humanas, ou
seja, sem aparentar conhecimento sobre o futuro ou mesmo sobre o passado dos
personagens, sem narrar eventos simultaneamente e sem conhecimento sobre as
sensações, sentimentos e pensamentos íntimos dos personagens. Este foco
narrativo é mais comum em narrativas centradas na ação e no suspense, assim é
um tipo de narrador muito frequente em histórias policiais, de guerra e de
terror. Além dessa perspectiva, o narrador pode também ser onisciente quando
ele aborda uma história também sob a premissa da onipresença, pois tem um controle sobre o
que narra digno de ser muito superior às capacidades humanas, visto que as supera
em função de que não tem as - já descritas - limitações dela, por isso narra o
que acontece em locais diferentes de forma simultânea, o que se passa no íntimo dos
personagens e sobre o passado e o futuro deles.
Estrutura da narrativa
Quanto à estrutura de textos
narrativos, pode-se dizer que a maioria das narrações organiza-se em torno de
uma apresentação, em que um
equilíbrio de forças é sugerido ou mostrado, personagens são apresentados e
referências espaço-temporais são marcadas. O desenvolvimento é a parte em que o conflito narrativo é
estabelecido e desenvolve-se com o objetivo de ser solucionado - em tese - da
forma mais interessante e imprevista possível. O clímax é o momento mais intenso e crítico da narrativa, dele deriva
a solução para o conflito desenvolvido, embora não se possa esperar apenas
resultados positivos desse processo, porque o equilíbrio alcançado
posteriormente pode ser muito diferente daquele informado ou sugerido na introdução.
A última parte convencionalmente de uma narrativa é a conclusão ou desfecho, em que se apresenta a solução para o conflito criado
pelas ações dos personagens, o que restabelece, portanto, o equilíbrio na
narrativa. Importante informar que partes de uma narrativa podem ser suprimidas
como a conclusão ou a introdução ou a ordem delas pode ser modificada, como
ocorre em muitas produções da atualidade no cinema e na literatura, são exemplos
os filmes “Adaptação”, “Transpotting”, etc.
Gêneros narrativos
1. Relato - segundo o dicionário Houaiss, o termo “relatar” refere-se à exposição oral ou escrita de um fato ou mesmo narrar, expor, referir. Assim, percebe-se que a tipologia textual narrativa que é o principal mecanismo construtor do gênero textual relato, no qual se informa o leitor sobre alguma experiência de vida do escritor ou sobre algum acontecimento que ele tenha presenciado ou sabido. Diante disso, o relatar deve ser situado no tempo e no espaço.
O relato é um gênero textual em que se conta um fato que ocorreu com o narrador ou com outra pessoa circunscrito a um intervalo específico e determinado de tempo. Também é comumente escrito com reflexões acerca das experiências vividas ou vivenciadas. Em outras palavras, geralmente, tais relatos devem nos servir para refletir sobre acontecimentos da vida e sobre o que aprendemos ao vivê-los. Um relato tem como características principais:
- Contextualização inicial do relato, identificando tema,
espaço e período;
- Identificação do relator como sujeito das ações relatadas
e experiências vivenciadas, ou seja, o narrador deve ser personagem, o que
deve ser confirmado pela proposição geral da proposta de redação;
- O discurso indireto é a única possibilidade de
comunicação das falas dos personagens do relato. O discurso direto será
penalizado.
- É importante reforçar o uso de tempos verbais predominantemente
no passado e com expressões temporais, como “Naquela manhã”, “Depois”, “Em
seguida”, etc.;
- Linguagem informal é mais comum, ainda que isso dependa das orientações da banca sobre como proceder na confecção do texto.
Exemplos:
Texto 01.
“ João Carlos
Martins herdou a paixão pela música de seu pai José, que teve seus estudos de
piano interrompidos ainda na infância, quando perdeu um dos dedos da mão
direita em uma máquina de corte, na gráfica onde trabalhava.
A
paixão pela música, no entanto, seria passada para a próxima geração e o
acidente ocorrido com sua mão foi o primeiro de uma série que iria marcar a
história da família.
Em
1940 nasceu João Carlos Martins, 4º filho de José, que logo se tornou
amante da música, assim como seu irmão, José Eduardo. Desde as primeiras aulas
de piano João já demonstrava grande talento, e aos 8 anos venceu seu primeiro
concurso tocando obras de Bach.
João
se tornou o maior intérprete mundial de Bach, mas teve vários incidentes ao
longo da vida envolvendo suas mãos, que hoje estão atrofiadas.
Aos
63 anos João iniciou uma nova carreira, como regente e mais uma vez surpreendeu
a todos com sua dedicação. Hoje com 69 anos, ele se sente agradecido por ser
brasileiro e poder continuar levando a música às todas as camadas sociais,
provando que ‘A música venceu’.”
Texto 02.
A reta final
Quando chegou meu primeiro dia de ir
para escola estava muito ansiosa pensando o que iria encontrar pela frente.
Crianças, iguais a mim, meus futuros amigos, professores, obstáculos e uma
grande insegurança, pois estava deixando o aconchego da minha casa para
compartilhar parte do meu dia com pessoas estranhas e diferentes.
Desde que iniciei na escola até hoje
sempre gostei de estudar, aprender, trocar idéias acho que sempre temos algo á
aprender e á ensinar. Pensava em dar continuidade aos estudos, em cursar nível
superior, mas sem muitas condições financeiras, acabei adiando este sonho como
tantas outras pessoas que lutam pra ingressar em uma faculdade, mas se limita a
isso, apesar de minha família sempre me incentivar a estudar.
No ensino fundamental estudei em
três escolas e no ensino médio em duas, apesar dos obstáculos que encontrei,
como a mudança de uma escola para outra, a conquista de novas amizades e novos
professores, nunca desisti, procurava me esforçar e conseguir terminar no
mínimo o segundo grau. Foi o que fiz.
Passados alguns anos, depois de
fazer alguns cursos, fui incentivada pelo meu namorado a prestar o vestibular,
me inscrevi já com orgulho de mim mesma, pela coragem de encarar mais este
obstáculo. Não imaginava que iria passar devido aos vários anos longe da escola.
Além disso, surgia à dúvida entre qual curso eu escolheria. Fiz minha inscrição
e decidi fazer Pedagogia, para minha surpresa passei em 1ª chamada, fiz minha
matrícula e ingressei no curso.
Durante a minha caminhada tive
algumas dúvidas se era realmente este caminho que gostaria de seguir, pensava:
Vou ser professora, será que é isso que realmente quero... Ficava um pouco
confusa, pois além da dúvida, havia as pessoas que criticavam as minhas
escolhas, dizendo: Tu vai ser professora para ganhar uma miséria? Tranquei
minha matrícula por dois anos, pensei, repensei e pensei de novo. Quando
surgiram algumas especializações na área, decidi voltar, pois haveria mais
opções de escolha dentro da área de Pedagogia e não somente dar aula. Se não me
saísse bem na sala de aula, teria outras opções.
Hoje estou a um passo de concluir
meu curso e sinto muito orgulho quando as pessoas perguntam quando vou me
formar e posso responder: “Me formo ano que vem...”. Achava que este dia não
iria chegar tão cedo. Imagino o dia da minha formatura, que as pessoas que eu
amo estarão lá me assistindo, penso nos amigos torcendo por mim, pela minha
conquista. Imagino a música tocando no momento que chamarem meu nome. Quero que
este dia seja inesquecível, pois tenho certeza que naquele momento as pessoas
próximas vão lembrar do quanto custou minha caminhada até realizar este sonho,
as desilusões, as perdas e ganhos, as decepções até conseguir chegar aonde
cheguei.
Relembro
o início da minha vida como estudante e da satisfação em estar conquistando
mais um sonho na minha vida, que quase estava sendo deixado de lado.
Mas não deixo de citar uma pessoa
muito importante na realização desta conquista. Uma pessoa que sempre me ajuda
muito que preciso, meu namorado Wagner, hoje meu marido. Graças ao incentivo
dele, da sua insistência, da sua compreensão durante todos estes anos, estou na
reta final da realização de mais um dos nossos sonhos, e espero que este seja
apenas um alicerce que sustente os próximos sonhos que pretendemos realizar juntos.
(Keli Cristina Till)
Texto 03.
[...] Em Santos, onde morávamos, minha mãe me lia histórias, meu pai
gostava de declamar poesias. Foi em um momento da escola - 6ª série hoje – que
li do começo ao fim um romance: Inocência,
de Taunay. Essa é minha mais remota lembrança de leitura de um romance
brasileiro. Lia o livro aberto nos joelhos, afundada numa poltrona velha e
gorda, num quartinho com máquina de costura, estante cheia de livros e
quinquilharias e vez ou outra atrapalhada por uma gata branca chamada Minnie
Até então leitura era coisa doméstica. Tinha a ver apenas comigo mesma,
com os livros que havia na estante de meu pai e com os volumes que avós, tias e
madrinhas me davam de presente. No cardápio destas leituras, Monteiro Lobato
com seu sítio do pica-pau amarelo, as aventuras de Tarzan, gibis e mais gibis.
Mas um dia a escola entrou na história.
Dona Célia, nossa professora de português, mandou a gente ler um livro
chamado Inocência. Disse que era um
romance. Na classe tinha uma menina chamada Maria Inocência. Loira desbotada,
rica e chata. Muito chata. Alguma coisa em minha cabeça dizia que um livro com
nome de colega chata não podia ser coisa boa.
Foi por isso que com a maior má vontade do mundo é que comecei a leitura
do romance. O livro começou bem chatinho, mas depois acabei me interessando por
ele. Não o incluo entre os melhores livros que li, mas foi ele quem me ensinou
a ler romances e a gostar deles, desconfiando primeiro, abrindo trilhas depois
e, finalmente, me entregando à história.
Depois vieram outros, em casa e na escola. Com o tempo virei uma
profissional da leitura, dando aula de literatura em colégios, cursinhos e
faculdades.
Assim, livros e leituras foram ocupando espaços cada vez maiores. Na
minha casa e na minha vida. A estante do quartinho dos fundos ampliou-se. Falar
de livros virou profissão e muitos outros romances brasileiros continuaram a
construção da leitora que sou hoje. (Marisa Lajolo)
Texto 04.
“Noite
escura, sem céu nem estrelas. Uma noite de ardentia. Estava tremendo. O que
seria desta vez? A resposta veio do fundo. Uma enorme baleia, com o corpo todo
iluminado, passava exatamente sob o barco, quase tocando-lhe o fundo. Podia ser
sua descomunal cauda, de envergadura talvez igual ao comprimento do meu barco, passando
por baixo, de um lado, enquanto do outro, seguiam o corpo e a cabeça. Com o seu
movimento verde fosforescente iluminando a noite, nem me tocou, e iluminada
seguiu em frente. Com as mãos agarradas na borda, estava completamente
paralisado por tão impressionante espetáculo— belo e assustador ao mesmo tempo.
Acompanhava com os olhos e a respiração seu caminho sob a superfície. Manobrou
e voltou-se de novo, e, mesmo maravilhado com o que via, não tive a menor
dúvida: voei para dentro, fechei a porta e todos os respiros, e fiquei
aguardando, deitado, com as mãos no teto, pronto para o golpe. Suavemente tocou
o leme e passou a empurrar o barco, que ficou atravessado a sua frente. Eu
procurava imaginar o que ela queria.”
(KLINK,
Amir. "Cem dias entre céu e mar". Rio de Janeiro: José Olympio, 1986)
2 - Conto - ainda que se possa afirmar que é uma narrativa
mais breve do que o romance e a novela, para muitos teóricos é uma forma
narrativa de ficção literária melhor definida pela captação de um instante, de
um momento da trajetória de um núcleo dramático (um protagonista, uma família,
etc.). Isso porque contém geralmente um único drama ou conflito desenvolvido
num espaço restrito, num tempo curto e por um número reduzido de personagens.
São exemplos: “O primo”, Paulo Henriques Britto; “Amor”, Clarice Lispector; etc.
Este gênero remonta à Antiguidade na forma escrita e a tempos imemoriais na oralidade. As histórias contadas no livro egípcio intitulado “O livro do mágico” são precursoras desse tipo de gênero narrativo, mais tarde a história bíblica de Caim e Abel poderia muito bem ser enquadrada como um conto. Mais tarde, os irmão Grimm fariam uma importante contribuição para a história do conto com o seu “Contos para crianças e famílias”, em que diversas narrativas que povoam o imaginário da sociedade até hoje foram escritas no seu formato e enredo mais conhecido. No século XIX, o conto se estabeleceria como um gênero narrativo de muita popularidade, o que ainda perdura na atualidade, contribuiriam para a consolidação do conto uma importante expressão literária Maupassant, Edgar Allan Poe, Mary Shelley, Leon Tolstoy, Flaubert, Machado de Assis, Gogol, Arthur Conan Doyle e Eça de Queiroz, entre muitos outros.
Este gênero remonta à Antiguidade na forma escrita e a tempos imemoriais na oralidade. As histórias contadas no livro egípcio intitulado “O livro do mágico” são precursoras desse tipo de gênero narrativo, mais tarde a história bíblica de Caim e Abel poderia muito bem ser enquadrada como um conto. Mais tarde, os irmão Grimm fariam uma importante contribuição para a história do conto com o seu “Contos para crianças e famílias”, em que diversas narrativas que povoam o imaginário da sociedade até hoje foram escritas no seu formato e enredo mais conhecido. No século XIX, o conto se estabeleceria como um gênero narrativo de muita popularidade, o que ainda perdura na atualidade, contribuiriam para a consolidação do conto uma importante expressão literária Maupassant, Edgar Allan Poe, Mary Shelley, Leon Tolstoy, Flaubert, Machado de Assis, Gogol, Arthur Conan Doyle e Eça de Queiroz, entre muitos outros.
Exemplos:
Texto 01.
A igreja do diabo
Machado de Assis
CAPÍTULO I
DE UMA IDÉIA MIRÍFICA
Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em
certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem
contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde
séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia,
por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos.
Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do
Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma
vez.
- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra
Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à
farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho
eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja
uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se
dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem
Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os
braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com
Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de
ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo
as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da
sombra para o infinito azul.
II
ENTRE DEUS E O DIABO
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os
serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo
deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
- Que me queres tu? perguntou este.
- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo
rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
- Explica-te.
- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga:
recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais
afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos
cheios de doçura.
- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter
convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por
causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas
palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu
reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E
então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de
dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,
- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta
de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um
mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a
minha pedra fundamental.
- Vai
- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
- Não é preciso; basta que me digas desde já por que
motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma
igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha
alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória,
qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior
ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns
séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a
rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu
proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja;
atrás delas virão as de seda pura...
- Velho retórico! murmurou o Senhor.
- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés,
nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se
do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de
curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, -
a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os
benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou
quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me
detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz
de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma
comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e
sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu
o Diabo.
- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um
espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está
dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força,
nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te
retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do
tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
- Já vos disse que não.
- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime.
Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos,
na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e
mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí
a franja de algodão?
- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
- Negas esta morte?
- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de
caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente
aborrecê-los...
- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a
tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os
homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus
impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as
harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar;
dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
III
A BOA NOVA AOS HOMENS
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se
pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a
espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas
entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da
terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo;
mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir
as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites
sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e
único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do
coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos
lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um
lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o
entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de
si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A
doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à
substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e
deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser
substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a
luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou
não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e
a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem
o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de
Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as
melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão
superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi
a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de
ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela
virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons
manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela
sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica,
pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos
seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou
friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas;
virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo
incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas,
trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que
ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era
a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia
que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos,
outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração,
porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo
chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo,
era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender
a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma
razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não
podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são
mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?
Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem
os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo
a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um
privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim
o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou
pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria
dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo
tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e
subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das
injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a
calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária,
ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa
da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois
equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram
condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e
pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção
foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o
respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria
cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um
obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples
invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo
senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à
demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um
padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das
marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há
próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando
se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a
particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si
mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por
metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: -
Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada
acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos
adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
IV
FRANJAS E FRANJAS
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja
capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja,
deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram
chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a
doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma
língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de
triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que
muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as
praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às
ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes
por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas,
à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário
restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez,
com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que
estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais
diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até
incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente
uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das
vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para
ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o
procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano;
roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que
rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas
extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos
seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne
falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana,
telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na
cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao
jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de
um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e,
conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas
vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha
aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de
refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao
passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa
secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o
interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica.
Pôs os olhos nele, e disse:
- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres
tu? É a eterna contradição humana.
Fonte: Contos Consagrados - Machado de Assis - Coleção
Prestigio - Ediouro - s/d.
Texto 02.
Um saco de risadas
Eu sou feliz. Sou muito feliz. Sou feliz demais. Eu sou
tão feliz, mas tão feliz, que cada degrau da minha vida é um sorriso onde eu
piso. Ah essa brancura da dentadura que se espalha! Essa cara de palhaço
estampada no espelho! Já nem tenho tempo de parar pra rir: rio dormindo, rio
acordado; rio correndo, rio parado. Rio um riso arrepiado, rio o riso
arrependido. Rio o riso dos amantes, rio o riso dos maridos. Riso esganiçado.
Riso empedernido. Rio quando cago. Rio quando mijo. Rio quando o sol aparece,
rio quando fica escondido. Ninguém pode me proibir. Um desgraçado também pode
rir! Rio pra seduzir, rio pra disfarçar, rio pra distrair, rio pra suportar. O
eterno exercício do maxilar! Rio no almoço, rio no jantar. O riso da garganta
em carne viva, riso que se morde na gengiva. Rio de tudo, rio de nádegas, riso
absurdo, riso de cócegas. O riso feito um soluço. Riso rido como um susto! O
riso de terror petrificado. Rir de um corpo estatelado. Risos calculados. O
riso embasbacado dos casais apaixonados. E eu rio com o que tenho de dentes!
Alegria enxurrada de enchentes! Riso histérico dos dementes! Rio porque é duro.
Rio porque é de graça. Gás hilariante espalhado pelas praças! Rir com
segurança, rir das ameaças! Rio quando cheiro. Rio sem vergonha. Rio quando
fumo. Rio com maconha o riso dos malucos. Rio quando encontro, rio quando
esbarro. Rio porque é sério, rio tirando sarro - a língua mergulhada na saliva
e no catarro! Rio tomando água, rio bebendo pinga. Rio porque são frescas. Rio
porque são lindas. O riso como um pote de pimenta gargalhando num sorriso que
aumenta. Rio o riso dos primeiros, rio o riso dos cansados. Rio o riso dos
coveiros, rio o riso dos defuntos. Rio pra me lembrar. Rio pra me esquecer.
Risos pra resfriar, risos pra aquecer. Rir o riso dos parentes, rir o riso dos
amigos, rir o riso dos contentes, rir o riso dos falidos. Rio o riso do pecado.
Rir um riso preocupado. O riso do cachorro se pendura pelo rabo. O riso das
hienas quando encontram a carniça. O riso dos ateus que precisam ir à missa. O
riso imaculado, o vagabundo e o invocado. O riso dos maduros, o riso dos
meninos. Sorrisos em apuros: o destino dos forçados, a sina dos verdugos. O
riso amarelo da educação. O riso budista da meditação. Rir como aviso. A pura
tentação do riso. As risadas meladas das tortas arremessadas. Rir o riso
pastelão, riso engarrafado de televisão. As mesmas piadas repassadas e caímos
na cilada! Rio em congestionamento, rio em casamento. Rio com farinha, rio com
cimento. Rio direto. Do bom, do melhor, do desprezível. Rir que o riso é infalível.
Uma risada grudando na outra, fazendo uma música rachada no céu da minha boca.
Rio da minha cara, rio da minha fome. A vingança que se cospe no prato frio.
Rir à puta que pariu! Rio por dentro de pesadelos esquisitos; nas marquises dos
edifícios espremidos, rir o riso dos pobres, rir o riso dos ricos (é bom que
fique claro: o riso dos bacanas é o mesmo dos coitados). Com a cara, a coragem,
a covardia. Rio todo dia. Rio porque sim, rio porque não. Rio de janeiro,
fevereiro ou março. Rio de mim, rio do fim, rio de você. Ontem ainda
"estava" feliz, mas hoje "eu sou". Nada abala minha
felicidade. Eu sou feliz. Feliz até à carne. Feliz demais. Risos. Só risos.
Nada mais. Exalo felicidade por todos os poros. Uma felicidade contagiante
mesmo. Uma hora dessas, puxa! Eu nem sei... (Fernando Bonassi)
Texto 03.
“Os crimes da Rua Morgue”, Edgar Allan Poe.
Texto 04.
Amor*
Um pouco cansada, com as compras
deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo
e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num
suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons,
uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si,
malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o
fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos
poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara
lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo
horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não
outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o
cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos,
crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de
fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo,
tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais
perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada
mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do
que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava
blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu
desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias
realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e
suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de
aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida
podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana
sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar
perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de
mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com
quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros.
Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia
aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia:
abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como
quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana
antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação
perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara
em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o
escolhera.
Sua precaução
reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava
vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído
nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em
espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu
espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam
transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar,
cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da
tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com
sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres.
Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem
arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e
suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela
o quisera e escolhera.
O bonde vacilava
nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava
anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou
profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se
arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então
que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre
ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se
mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais
que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava
sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava
chicles.
Ana ainda teve
tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração
batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se
olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os
olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente
deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado,
Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas
continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada
súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do
colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de
saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se
mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto,
há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta,
incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos
se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam
entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos
inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi
jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor,
o bonde deu a nova arrancada de partida.
Poucos instantes
depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando
goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô
era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o
sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as
compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal
estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a
sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do
acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível…
O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas
escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua
eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da
escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas
não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se
agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas
pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de
crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as
coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho
uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a
rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado.
Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada
pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na
com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto.
Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho!
Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade
extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão
bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena
compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas
para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito
de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava
tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce,
até a boca.
Só então percebeu
que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a
atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si,
segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia
ter saltado no meio da noite.
Era uma rua
comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava
inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava
a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou
parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo
de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente
pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou
muito tempo.
A vastidão parecia
acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a
aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o
atalho.
Ao seu redor havia
ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o
Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o
meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo
era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve e
íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na
aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo
andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em
torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava
na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada.
Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as
frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de
circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de
sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore
pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O
assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que
imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas
dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço
era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante,
a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam
carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia
crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela
estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a
guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio,
onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na
relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A
decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com
a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do
mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o
seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite
agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a
terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia
nojo.
Mas quando se
lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma
exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a
alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade
soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O
vigia apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não
chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede
até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo
cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo,
perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as
maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava —
que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora
pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou
correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a
abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida
era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo.
Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento
de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o
filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o
belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora
atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que
faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos
que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas
delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe,
chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não
deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar,
escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior
olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair
numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como
fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava.
Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É
que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a
pior vontade de viver.
Já não sabia se
estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se
distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam
ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror
descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a
sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria
apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada.
Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah!
era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira
a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma
piedade de leão.
Humilhada, sabia
que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por
quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar.
Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com
este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na
sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida
arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno
horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a
pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor
se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se
fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O
pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na
água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros
inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror,
horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o
creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite
cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois
seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus
olhos.
Depois o marido
veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as
janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor
do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas
crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria
inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os
outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas
janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não
discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom
e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma
borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse
seu.
Depois, quando
todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta
que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego
desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de
novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade
de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as
vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do
Jardim Botânico.
Se fora um estouro
do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha
e deparando com o seu marido diante do café derramado.
— O que foi?!
gritou vibrando toda.
Ele se assustou
com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
— Não foi nada,
disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do
estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em
rápido afago.
— Não quero que
lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
— Deixe que pelo
menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem
força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na
casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é
tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da
mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a
vertigem de bondade.
E, se atravessara
o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante
sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela,
soprou a pequena flama do dia.
Clarice Lispector
Extraído no livro Laços de Família, Editora Rocco – Rio
de Janeiro, 1998
*Considerado por Ítalo Mariconi um dos 100 melhores
contos brasileiros do séc. XX.
3 - Micro conto e nano conto – gênero textual caracterizado
pela intensa e por vezes radical opção pela concisão da história narrada. Na
maioria das vezes, as histórias são contadas com não mais do que algumas ou no
máximo dezenas de palavras. As limitações de palavras ou caracteres usados pelos seus autores, muitas vezes, remetem a recursos de comunicação como as mensagens enviadas por SMS (150 caracteres) ou mesmo as enviadas pela Twitter (140 caracteres). Por isso, forma de narrar muito cultuada por
escritores que têm como principal suporte de divulgação para seus trabalhos a
internet, porque dialoga com a velocidade e o dinamismo de um tempo muito
determinado por esse meio de comunicação, daí talvez o gosto pela síntese que
define essa modalidade narrativa. São exemplos as produções do “site” www.nemonox.com/1000portas.
Texto 01.
Texto 01.
O
maior trauma do vampiro narcisista era não poder se admirar ao espelho.
(@microcontos)
Texto
02.
Vende-se:
sapatos de bebê, sem uso. (Ernest Hemingway)
Texto
03.
“Olha,
Pai, eu tentei, mas acho que não deu muito certo não...” (Antônio Prata)
Texto
04.
“Um
homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se
suicida.” (Anton
Tchekhov)
Texto
05.
“A
velha insônia tossiu três da manhã.” (Dalton
Trevisan)
Texto
06.
“Uma
gaiola saiu à procura de um pássaro.” (Franz Kafka)
Texto
07.
“Uma
vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.” (Cíntia Moscovich)
Texto
08.
“Fui
me confessar ao mar. O que ele disse? Nada.” (Lygia Fagundes Telles)
Texto 09.
“Alzheimer:
conhecer novas pessoas todos os dias.” (Phil Skversky)
Texto 10.
“Eu
perguntei. Eles responderam. Eu escrevi.” (Sebastian Junger)
Texto 11.
“Eu
ainda faço café para dois.” (Zak Nelson)
4 - Romance – texto
narrativo em prosa tal como o conto e a novela. Forma de explorar mais que um
conflito na trajetória de um núcleo dramático, de maneira geralmente
pormenorizada, em virtude de os personagens, os espaços e o enredo serem
desenvolvidos mais profunda e detalhadamente que em outros gêneros narrativos
literários. Além disso, os episódios e histórias paralelas a principal têm forte dependência em relação ao eixo temático principal. São exemplos: “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos; “O vermelho e o negro”, de Stendhal; “Crime e castigo”, de Dostoiévski; “1984”, de George Orwell; “Lolita”, de Vladimir Nabokov; etc.
5 - Novela – tipo de
narrativa caracterizado pela presença de um núcleo dramático principal,
desenvolvido de forma mais detalhada que no conto e menos do que no romance,
entretanto é acompanhado por outros núcleos de importância menor na história,
mesmo porque orbitam o principal, os quais podem ter alguns momentos da
narrativa com atenção semelhante à dada ao núcleo principal. Isso não ocorre no conto ou no romance, visto
que neles o (s) protagonista (s) tem atenção
absoluta ao longo de praticamente toda a narrativa. Comparada ao romance, a
novela apresenta menos recursos narrativos; já em comparação ao conto, um
enredo mais desenvolvido e personagens descritos com mais detalhamento. São
exemplos: “Um copo de cólera”, Raduan
Nassar; “Noites brancas", Fiódor Dostoiévski; "A hora da estrela", Clarice Lispector; etc.
6 - Narrativa oral – forma oral de se contar uma história ou relatar um fato que pode ser esquecida em meio ao cotidiano de indivíduos e comunidades ou pode ser incorporada às vivências de uma pessoa ou mesmo à cultura de uma comunidade, o que permite que essa história atravesse, mesmo não documentada pela escrita, séculos com suas informações principais preservadas razoavelmente. Essa modalidade textual narrativa é fundamental na criação, no estabelecimento e na manutenção de aspectos importantes do folclore, da religião, da medicina popular, etc.
7 - Fábula - narrativa curta protagonizada geralmente por animais que foram humanizados, já
que interagem e comunicam-se de forma assemelhada aos seres humanos.
Geralmente, contém uma "moral" implícita ou explícita, que tem
caráter pedagógico, no sentido de que ambiciona incutir, em particular nas
crianças, determinados ensinamentos e regras. Além disso, os animais
humanizados assumem com frequência algum arquétipo associado a uma
característica, personalidade ou estereótipo humano. Dentre os escritores que
se notabilizaram estão Ésopo, La Fontaine, Monteiro Lobato, etc. George Orwell
também fez-se famoso por causa de obras como “Revolução dos bichos”, em que
animais assumem papeis típicos de um regime autocrático em uma fazenda, contudo
é uma narrativa voltada a adultos por causa da temática violenta e opressiva, mas ainda assim uma fábula.
Texto 01.
A cigarra e as formigas
Num belo dia de inverno as formigas estavam tendo o maior trabalho para secar suas reservas de trigo. Depois de uma chuvarada, os grãos tinham ficado completamente molhados. De repente aparece uma cigarra:
“Por favor, formiguinhas, me deem um pouco de trigo! Estou com uma fome danada, acho que vou morrer.”
As formigas pararam de trabalhar, coisa que era contra os princípios delas, e perguntaram:
“Mas por quê? O que você fez durante o verão? Por acaso não se lembrou de guardar comida para o inverno?”
“Para falar a verdade, não tive tempo”, respondeu a cigarra. “Passei o verão cantando!”
“Bom... Se você passou o verão cantando, que tal passar o inverno dançando”, disseram as formigas, e voltaram para o trabalho dando risada.
Moral: Os preguiçosos colhem o que merecem. (Esopo)
Texto 02.
A cigarra e a formiga má
Já houve entretanto, uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta. Foi isso na Europa, em pleno inverno, quando a neve recobria o mundo com o seu cruel manto de gelo. A cigarra, como de costume, havia cantado sem parar o estio inteiro, e o inverno veio encontrá-la desprovida de tudo, sem casa onde abrigar-se, nem folhinhas que comesse. Desesperada, bateu à porta da formiga e implorou - emprestado, notem! - uns miseráveis restos de comida. Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo, logo que o tempo o permitisse. Mas a formiga era uma usuária sem entranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.
- Que fazia você durante o bom tempo?
- Eu... eu cantava!...
- Cantava? Pois dance agora... - e fechou-lhe a porta no nariz.
Resultado: a cigarra ali morreu estanguidinha; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste. Ë que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usurária morresse, quem daria pela falta dela?
Os artistas - poetas, pintores e músicos - são as cigarras da humanidade. (Monteiro Lobato)
Texto 03.
O Rei dos Animais
Saiu o leão a fazer sua pesquisa estatística, para verificar se ainda
era o Rei das Selvas. Os tempos tinham mudado muito, as condições do progresso
alterado a psicologia e os métodos de combate das feras, as relações de
respeito entre os animais já não eram as mesmas, de modo que seria bom indagar.
Não que restasse ao Leão qualquer dúvida quanto à sua realeza. Mas assegurar-se
é uma das constantes do espírito humano, e, por extensão, do espírito animal.
Ouvir da boca dos outros a consagração do nosso valor, saber o sabido, quando
ele nos é favorável, eis um prazer dos deuses. Assim o Leão encontrou o Macaco
e perguntou: "Hei, você aí, macaco - quem é o rei dos animais?" O
Macaco, surpreendido pelo rugir indagatório, deu um salto de pavor e, quando
respondeu, já estava no mais alto galho da mais alta árvore da floresta:
"Claro que é você, Leão, claro que é você!".
Satisfeito, o Leão continuou pela floresta e perguntou ao papagaio:
"Currupaco, papagaio. Quem é, segundo seu conceito, o Senhor da Floresta,
não é o Leão?" E como aos papagaios não é dado o dom de improvisar, mas
apenas o de repetir, lá repetiu o papagaio: "Currupaco... não é o Leão?
Não é o Leão? Currupaco, não é o Leão?".
Cheio de si, prosseguiu o Leão pela floresta em busca de novas
afirmações de sua personalidade. Encontrou a coruja e perguntou: "Coruja,
não sou eu o maioral da mata?" "Sim, és tu", disse a coruja. Mas
disse de sábia, não de crente. E lá se foi o Leão, mais firme no passo, mais
alto de cabeça. Encontrou o tigre. "Tigre, - disse em voz de estentor - eu
sou o rei da floresta. Certo?" O tigre rugiu, hesitou, tentou não
responder, mas sentiu o barulho do olhar do Leão fixo em si, e disse, rugindo
contrafeito: "Sim". E rugiu ainda mais mal humorado e já arrependido,
quando o leão se afastou.
Três quilômetros adiante, numa grande clareira, o Leão encontrou o
elefante. Perguntou: "Elefante, quem manda na floresta, quem é Rei,
Imperador, Presidente da República, dono e senhor de árvores e de seres, dentro
da mata?" O elefante pegou-o pela tromba, deu três voltas com ele pelo ar,
atirou-o contra o tronco de uma árvore e desapareceu floresta adentro. O Leão
caiu no chão, tonto e ensanguentado, levantou-se lambendo uma das patas, e murmurou:
"Que diabo, só porque não sabia a resposta não era preciso ficar tão
zangado".
Moral: cada um tira dos acontecimentos a conclusão que bem entende.
(Millôr Fernandes)
8 - Apólogo - narrativa em prosa e alegórica geralmente
curta e protagonizada por objetos humanizados, por isso falam, sofrem,
alegram-se, etc. Assemelha-se à fábula, visto que contém uma "moral"
implícita ou explícita também pelas mesmas razões. São os autores mais
renomados Esopo e La Fontaine.
Texto 01.
Um Apólogo
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para
fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar
insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora
não é alfinete, é agulha. Agulha não tem
cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.
Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama,
quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você
é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro,
dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por
você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo
adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo.
Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se
disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de
si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da
agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano
adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como
os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se
importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando
abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo
enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para
ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se
também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia
mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira
dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até
que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a
ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto
necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou
outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha
para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa,
fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e
diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para
o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e
não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que
vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que
não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse,
abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária! (Machado de
Assis. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br)
9 - Parábola - narrativa alegórica, moralizante e curta protagonizada por seres humanos. Tipo de narrativa muito comum em vários povos, especialmente entre os hebreus, daí o fato de haver muitas delas no Novo Testamento, inclusive, segundo tradições cristãs, contadas por Jesus. Exemplos:
Texto 01.
"Continuou: Um
homem tinha dois filhos. Disse o mais moço a seu pai: Meu pai, dá-me a parte
dos bens que me toca. Ele repartiu os seus haveres entre ambos. Poucos dias
depois o filho mais moço, ajuntando tudo o que era seu, partiu para um país
longínquo, e lá dissipou todos os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de
ter consumido tudo, sobreveio àquele país uma grande fome, e ele começou a
passar necessidades.Foi encostar-se a um dos cidadãos daquele país, e este o
mandou para os seus campos guardar porcos. Ali desejava ele fartar-se das
alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. Caindo, porém, em si,
disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui estou
morrendo de fome! Levantar-me-ei, irei a meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei
contra o céu e diante de ti: já não sou digno de ser chamado teu filho;
trata-me como um dos teus jornaleiros. Levantando-se, foi para seu pai. Estando
ele ainda longe, seu pai viu-o e teve compaixão dele e, correndo, o abraçou e
beijou. Disse-lhe o filho: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou
digno de ser chamado teu filho. O pai, porém, disse aos seus servos: Trazei-me
depressa a melhor roupa e vesti-lha, e ponde-lhe um anel no dedo e sandálias
nos pés; trazei também o novilho cevado, matai-o, comamos e regozijemo-nos,
porque este meu filho era morto e reviveu, estava perdido e se achou. E
começaram a regozijar-se. Seu filho mais velho estava no campo; quando voltou e
foi chegando à casa, ouviu a música e a dança: e chamando um dos criados,
perguntou-lhe que era aquilo. Este lhe respondeu: chegou teu irmão, e teu pai
mandou matar o novilho cevado, porque o recuperou com saúde. Ele se indignou, e
não queria entrar; e saindo seu pai, procurava conciliá-lo. Mas ele respondeu a
seu pai: Há tantos anos que te sirvo, sem jamais transgredir uma ordem tua, e
nunca me deste um cabrito para eu me regozijar com os meus amigos; mas quando
veio este teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, tu mandaste matar
para ele o novilho cevado. Replicou-lhe o pai: Filho, tu sempre estás comigo, e
tudo o que é meu é teu; entretanto cumpria regozijarmo-nos e alegrarmo-nos,
porque este teu irmão era morto e reviveu, estava perdido e se achou." (Lucas
15:11-32)
Texto 02.
"Naquele dia
saindo Jesus de casa, sentou-se junto ao mar; chegaram-se a ele grandes
multidões, de modo que entrou numa barca e se assentou; e todo o povo ficou em
pé na praia. Muitas coisas lhes falou em parábolas, dizendo: O semeador saiu a
semear. Quando semeava, uma parte da semente caiu à beira do caminho, e vieram
as aves e comeram-na. Outra parte caiu nos lugares pedregosos, onde não havia
muita terra; logo nasceu, porque a terra não era profunda e tendo saído o sol,
queimou-se; e porque não tinha raiz, secou-se. Outra caiu entre os espinhos, e
os espinhos cresceram e a sufocaram. Outra caiu na boa terra e dava fruto,
havendo grãos que rendiam cem, outros sessenta, outros trinta por um. Quem tem
ouvidos, ouça." (Mateus 13:1-9)
Texto 03.
Texto 03.
Buda
e a Flor de Lotus
Buda
reuniu seus discípulos, e mostrou uma flor de lótus - símbolo da pureza, porque
cresce imaculada em águas pantanosas.
-
Quero que me digam algo sobre isto que tenho nas mãos - perguntou Buda.
O
primeiro fez um verdadeiro tratado sobre a importância das flores.
O
segundo compôs uma linda poesia sobre suas pétalas.
O
terceiro inventou uma parábola usando a flor como exemplo.
Chegou
a vez de Mahakashyao. Este aproximou-se de Buda, cheirou a flor, e acariciou
seu rosto com uma das pétalas.
- É
uma flor de lótus - disse Mahakashyao. Simples e bela.
-
Você foi o único que viu o que eu tinha nas mãos - disse Buda. (Parábola
budista)
Texto 04.
Parábolas
Um
Mestre Sufi contava sempre uma parábola no final de cada aula, mas os alunos
nem sempre entendiam o seu significado.
-
Mestre, - perguntou um deles, certo dia - tu contas-nos contos mas nunca nos
explicas o que significam.
- As
minhas desculpas. - disse o Mestre - Como compensação, deixa-me que te ofereça
um belo pêssego.
-
Obrigado, Mestre - disse o discípulo, comovido.
-
Mais ainda: como prova do meu afecto, queria descascar-te o pêssego. Permites
que o faça?
-
Sim, muito obrigado. - disse o discípulo.
- E,
já que tenho a faca na mão, não gostarias que eu cortasse o pêssego em pedaços,
para que te seja mais fácil comê-lo?
-
Sim, mas não quero abusar da tua generosidade, Mestre...
-
Não é um abuso; sou eu que me estou a oferecer. Quero apenas agradar-te.
Permite-me também que mastigue o pêssego antes de to oferecer...
-
Não, Mestre! Não gostaria que fizesses isso! - queixou-se o discípulo,
surpreendido.
O
Mestre fez uma pausa e disse:
- Se
vos explicasse o sentido de cada conto, seria como dar-vos de comer fruta
mastigada. (Parábola sufi)
10 - Conto de fadas - versão curta, fantasiosa e híbrida de
outras narrativas populares, já que podem conter animais e objetos humanizados.
É na sua forma clássica profundamente maniqueísta, já que um herói, depois de
uma longa série de obstáculos, geralmente triunfa sobre o mal, o que empresta a
esse gênero narrativo grande previsibilidade. Os temas são normalmente
associados a questões familiares, existenciais, de autodescoberta e morais.
Neles, são comuns elementos associados à magia, à metamorfose e a eventos que
desafiam as leis naturais. Quanto à estrutura, como as demais narrativas
populares, são muito tradicionais. Entre os autores, destacam-se os irmãos
Grimm, Hans Cristhian Andersen, Lewis Carroll, Carlo Collodi, Gabrielle-Suzanne
Barbot, Charles Perrault e Monteiro Lobato.
Texto 01.
Texto 02.
Texto 03. (sobre as histórias originais dos contos de fadas.)
http://www.lendo.org/7-horrendos-contos-de-fadas-que-lhe-contam-desde-crianca/
11 - Arte sequencial - História em Quadrinhos (HQ), Mangá e “Graphic
Novel” – as HQs surgiram no século XIX da união
entre a linguagem verbal presente nos “balões”, em que constam as falas ou
pensamentos dos personagens, e desenhos que os representam em todo tipo
possível de ação, portanto é uma forma de contar histórias mista, porque verbal
e não verbal ao mesmo tempo. A reprodução das ações nesse tipo de narrativa,
daí arte sequencial, inspira-se em alguma medida no cinema, são exemplos as
séries históricas das décadas de 1960 e 1970 de heróis como Capitão América,
Super homem, Batman, Homem-aranha, X-Men, etc. Contudo essa escolha é denunciada de forma mais
explícita nos mangás, criados no
Japão, que se diferem das HQs, porque o enquadramento é realmente muito
assemelhado ao movimento de câmera do cinema, já que a história submete o enquadrinhamento e não o contrário como é comum nas HQs, e pela pouca importância dada à
linguagem verbal, daí a grande expressividade dos desenhos. São exemplos os títulos “Vagabond”,
“Cowboy Bebop”, “Neon Genesis Evangelion”, “Akira”, etc. Quanto à Graphic Novel ou Romance gráfico, criada nos EUA, trata-se
de uma HQ destinada ao público adulto em função do argumento com honestas
pretensões literárias, sociológicas ou filosóficas; das discussões refinadas
sobre vários aspectos da experiência humana e da qualidade artística requintada e inovadora dos
desenhos, além do enquadramento muito inspirado no Mangá. São exemplos “Watchmen”, “Constantine”,
“Sin City”, “Ronin”, “Livros da Magia”, “Sandman”, “Maus”, "Piada mortal", etc.
Texto 01. HQ
Texto 02. Mangá
Texto 03. "Graphic novel"
Texto 03.
15 - Fotonovelas - novelas em quadrinhos utilizam, no lugar
dos desenhos comuns a outras formas de Arte Sequencial, fotografias sequencialmente
organizadas com o intuito de contar uma história com ajuda de balões utilizados
para informar as falas ou mesmo os pensamentos dos personagens. No Brasil, as
fotonovelas fizeram muito sucesso entre as décadas de 1950 e 1970, quando não
sofriam de forma severa a concorrência da versão televisiva desse gênero
narrativo.
Texto 01.
Texto 02.
Texto 02.
Mineiro não mente: só que é muito criativo...
Um mineiro, lá de Curvelo, tinha 11 filhos, precisava
sair da casa onde morava e alugar outra, mas não conseguia por causa do monte
de crianças.
Quando ele dizia que tinha 11 filhos, ninguém queria
alugar porque sabiam que a criançada iria destruir a casa e ele não podia dizer
que não tinha filhos, não podia mentir, afinal, os mineiros não podem mentir.
Ele estava ficando desesperado, o prazo para se mudar
estava se esgotando.
Daí teve uma ideia: mandou a mulher ir passear no
cemitério com 10 dos filhos.
Pegou o filho que sobrou e foi ver casas junto com o
agente da imobiliária. Gostou de uma e o agente perguntou quantos filhos ele
tinha.
Ele respondeu que tinha 11.
Daí, o agente perguntou:
- Mas onde estão os outros?
E ele respondeu, com um ar muito triste:
- Estão no cemitério, junto com a mamãe deles.
E foi assim que ele conseguiu alugar uma casa sem
mentir... (Domínio público)
17 - Diário - tipo de texto geralmente de
caráter íntimo em que seu autor narra cronologicamente fatos ou acontecimentos
do cotidiano, opiniões sobre os mais variados assuntos, impressões acerca de si
mesmo ou do outro, confissões, meditações, etc. Pode ainda ser uma espécie de
registro de bordo de embarcações e aeronaves em que se anotam todos os
acontecimentos e fatos que concernem ao veículo ou mesmo à sua tripulação.
Outros usos desse gênero discursivo fazem os cientistas e pesquisadores que vão
a campo ou ao laboratório e, em um diário, anotam tudo importante e relevante
para as pesquisas nas quais estão envolvidos ou que ambicionam estar. Normalmente,
contém todas as características fundamentais do gênero narrativo e as entradas
de informação são organizadas por data. Seguem exemplos de trechos de diários
famosos como o de Anne Frank e de Charles Darwin:
Texto 01.
“12 de
junho de 1942
Espero poder contar tudo a você, como nunca pude
contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda.
Comentário
acrescentado por Anne em 28 de setembro de 1942
Até agora você tem sido um grande apoio para mim,
como também tem sido Kitty, para quem tenho escrito com regularidade. Esse modo
de manter um diário é bem melhor, e agora mal posso esperar os momentos de
escrever em você. Ah, estou tão feliz por ter você comigo!
Domingo,
14 de junho de 1942
Vou começar a partir do momento em que ganhei você,
quando o vi na mesa, no meio dos meus outros presentes de aniversário. (Eu
estava junto quando você foi comprado, e com isso eu não contava.)
Na sexta-feira, 12 de junho, acordei às seis horas,
o que não é de espantar; afinal, era meu aniversário. Mas não me deixam
levantar a essa hora; por isso, tive de controlar minha curiosidade até quinze
para as sete. Quando não dava mais para esperar, fui até a sala de jantar, onde
Moortje (a gata) me deu as boas-vindas, esfregando-se em minhas pernas.
Pouco depois das sete horas, fui ver papai e mamãe
e, depois, fui à sala abrir meus presentes, e você foi o primeiro que vi,
talvez um dos meus melhores presentes. Depois, em cima da mesa, havia um buquê
de rosas, algumas peônias e um vaso de planta. De papai e mamãe ganhei uma
blusa azul, um jogo, uma garrafa de suco de uva, que, na minha cabeça, deve ter
gosto parecido com o do vinho (afinal de contas, o vinho é feito de uvas), um
quebra-cabeça, um pote de creme para o corpo, 2,50 florins e um vale para dois
livros. Também ganhei outro livro, Camera obscura (mas Margot já tem, por isso
troquei o meu por outro), um prato de biscoitos caseiros (feitos por mim,
claro, já que me tornei especialista em biscoitos), montes de doces e uma torta
de morangos, de mamãe. E uma carta da vó, que chegou na hora certa, mas, claro,
isso foi só uma coincidência.
Depois, Hanneli veio me pegar, e fomos para a
escola. Na hora do recreio, distribuí biscoitos para os meus colegas e
professores e, logo depois, estava na hora de voltar aos estudos. Só cheguei em
casa às cinco horas, pois fui à ginástica com o resto da turma. (Não me deixam
participar, porque meus ombros e meus quadris tendem a se deslocar.) Como era
meu aniversário, pude decidir o que meus colegas jogariam, e escolhi vôlei.
Depois, todos fizeram uma roda em volta de mim, dançaram e cantaram
"Parabéns pra você". Quando cheguei em casa, Sanne Ledermann já estava
lá. Ilse Wagner, Hanneli Goslar e Jacqueline van Maarsen vieram comigo depois
da ginástica, pois somos da mesma turma. Hanneli e Sanne eram minhas melhores
amigas. As pessoas que nos viam juntas costumavam dizer: "Lá vão Anne,
Hanne e Sanne." Só fui conhecer Jacqueline van Maarsen quando comecei a
estudar no Liceu Israelita, e agora ela é minha melhor amiga. Ilse é a melhor
amiga de Hanneli, e Sanne é de outra escola e tem amigos lá.
Elas me deram um livro lindo, Nederlandse Sagen en
Legenden [Dutch Sagas and Legends], mas por engano deram o volume II, por isso
troquei dois outros livros pelo volume I. Tia Helene me trouxe um
quebra-cabeça, tia Stephanie, um broche encantador, e tia Leny, um livro
fantástico: Daisy’s bergvakantie [Daisy Goes to the Mountain].
Hoje de manhã, fiquei na banheira pensando em como
seria maravilhoso se eu tivesse um cachorro como Rin Tin Tin. Eu também iria
chamá-lo de Rin Tin Tin e o levaria para a escola; lá, ele poderia ficar na
sala do zelador ou perto dos bicicletários, quando o tempo estivesse bom.
Segunda-feira,
15 de junho de 1942
Minha festa de aniversário foi no domingo à tarde.
O filme de Rin Tin Tin fez o maior sucesso entre minhas colegas de escola.
Ganhei dois broches, um marcador de livros e dois livros.
Vou começar dizendo algumas coisas sobre minha
escola e minha turma, a começar pelos alunos.
Betty Bloemendaal parece meio pobre, e acho que
talvez ela seja. Ela mora numa rua que não é muito conhecida, no lado oeste de
Amsterdã, e nenhuma de nós sabe onde fica. Ela se dá muito bem na escola, mas é
porque estuda muito, e não porque seja inteligente. É muito quieta.
Jacqueline van Maarsen é, talvez, minha melhor
amiga, mas nunca tive uma amiga de verdade. No começo, achei que Jacque seria
uma, mas estava redondamente enganada.
D.Q.* é uma garota muito nervosa que sempre esquece
as coisas, de modo que os professores vivem passando dever de casa extra para
ela, como castigo. É muito gentil, especialmente com G.Z.
E.S. fala muito e não é engraçada. Vive mexendo no
cabelo da gente ou tocando em nossos botões quando pergunta alguma coisa. Dizem
que ela não me suporta, mas não ligo, porque também não gosto muito dela.
Henny Mets é uma garota legal, tem um jeito alegre,
só que fala em voz alta e parece mesmo uma criança quando estamos brincando no
pátio. Infelizmente, Henny tem uma amiga que se chama Beppy que é má influência
para ela, porque é suja e vulgar.
J.R. – eu poderia escrever um livro inteiro sobre
ela. J. é uma fofoqueira insuportável, sonsa, presunçosa e de duas caras, que
se acha muito adulta. Ela realmente enfeitiçou Jacque, e isso é uma vergonha.
J. se ofende à toa, chora pela menor coisa e, além disso tudo, é metida demais.
A Srta. J. é a dona da verdade. Ela é muito rica e tem um armário repleto de
vestidos maravilhosos, que são adultos demais para a sua idade. Ela se acha
linda, mas não é. J. e eu não nos suportamos.
Ilse Wagner é uma garota legal, tem um jeito
alegre, mas é afetada demais e consegue passar horas gemendo e reclamando de
alguma coisa. A Ilse gosta um bocado de mim. É muito inteligente, mas
preguiçosa.
Hanneli Goslar, ou Lies, como todos a chamam na
escola, é meio estranha. Costuma ser tímida – expansiva em casa, mas reservada
quando está perto de outras pessoas. Conta para a mãe tudo que a gente diz a
ela. Mas ela diz o que pensa, e ultimamente passei a admirá-la bastante.
Nannie van Praag-Sigaar é pequena, engraçada e
sensível. Acho que ela é ótima. É muito inteligente. Não há muito o que dizer
sobre Nannie.
Eefje de Jong é, em minha opinião, fantástica.
Apesar de só ter 12 anos, é a própria lady. Age como se eu fosse um bebê. Além
disso, é muito atenciosa, e eu gosto dela.
G.Z. é a garota mais bonita da turma. Tem um rosto
bonito, mas é meio burra. Acho que vão fazer ela repetir o ano, mas claro que
eu não lhe dei a notícia.
Comentário
acrescentado por Anne mais tarde
No fim das contas, para minha grande surpresa, G.Z.
não repetiu o ano.
E, sentada perto de G.Z., fica a última das 12
meninas: eu.
Há muito o que dizer sobre os garotos, ou talvez
não muito, pensando melhor.
Maurice Coster é um de meus muitos admiradores, mas
é uma tremenda peste.
Sallie Springer tem uma mente imunda, e todo mundo
fala que ele já fez de tudo. Mesmo assim, acho ele fantástico, porque é muito
engraçado.
Emiel Bonewit é admirador de G.Z., mas ela nem
liga. Ele é bem chato.
Rob Cohen também andou apaixonado por mim, mas não
aguento mais ele. É um patetinha antipático, falso, mentiroso e manhoso que se
acha simplesmente o máximo.
Max van de Velde é um camponês de Medemblik, mas um
cara legal, como diria Margot.
Herman Koopman também tem a mente suja, como Jopie
de Beer, que adora paquerar e é completamente louco pelas garotas.
Leo Blom é o melhor amigo de Jopie de Beer, mas foi
prejudicado por sua mente suja.
Albert de Mesquita veio da Escola Montessori e
pulou de ano. É inteligente de verdade.
Leo Slager veio da mesma escola, mas não é tão
inteligente. Ru Stoppelmon é um garoto baixinho e bobo, de Almelo, que foi
transferido para esta escola no meio do ano. C.N. faz tudo o que não deve.
Jacques Kocernoot senta atrás de nós, perto de C.,
e nós (G. e eu) morremos de rir.
Harry Schaap é o garoto mais decente de nossa
turma. Ele é legal.
Werner Joseph também é legal, mas as mudanças que
vêm acontecendo ultimamente fizeram ele ficar quieto demais, por isso parece
chato.
Sam Salomon é um daqueles caras valentões e
destrambelhados, um verdadeiro palhaço. (Admirador!)
Appie Riem é bem ortodoxo, mas também é um
pestinha.” (Trecho de “O Diário de Anne Frank”, de Anne Frank)
Texto 02.
“A
floresta é abundante em belezas; entre elas, samambaias que, embora não muito
grandes, eram pela verde e brilhante folhagem e elegante curvatura de suas
folhas, muito dignas de admiração.”
“É fácil
especificar os objetos de admiração nesses cenários grandiosos, mas não é
possível oferecer uma ideia adequada das emoções que sentimos, entre
maravilhados, surpresos e com sublime devoção, capazes de elevar a mente.”
“Os
brasileiros, até onde vai minha capacidade de julgamento, possuem somente uma
pequena quantia daquelas qualidades que dão dignidade à humanidade. Ignorantes,
covardes e indolentes ao extremo; hospitaleiros e bem-humorados enquanto isso
não lhes causar problemas.”
“O senhor
Earl viu um pedaço de um membro, que se arrancou com um aparelho de tortura, e
que não sem freqüência eles guardam em casa.”
“O
capitão Paget nos fez inúmeras visitas e é sempre muito divertido; ele
mencionou em presença de pessoas que teriam, caso pudessem, contradito suas
informações, alguns fatos sobre a escravidão tão revoltantes que, houvesse eu
lido a respeito delas na Inglaterra, teria atribuído ao zelo crédulo de gente
bem-intencionada. A extensão do comércio realizado; a ferocidade com que é
defendido; as respeitáveis (!) pessoas que estão envolvidas nele passam longe
de ser exageradas no que lemos.” (Charles Darwin, trechos
do “Diário do Beagle”)
18 - Crônica - é um texto, originalmente do universo dos relatos históricos, que foi
ao longo do século XX no Brasil mais afinado com o ambiente jornalístico.
Apesar de se confundir com a linguagem jornalística hoje em dia, por vezes,
aproxima-se da Literatura, mais em alguns autores, menos em outros, já que as
liberdades linguísticas permitidas aos cronistas: o flerte com o humor, as
analogias imprevisíveis e inusitadas, a tendência a conter fortes influências
narrativas, a reinvenção na linguagem e a estrutura muito flexível tornam essa
modalidade textual uma forma literária e jornalística em muitos casos difícil
de classificar e delimitar, mas ainda uma ponte muito oportuna entre os jornais
e a arte.
Isso se explica também por causa da opção de não se resumir o universo
da crônica a relatos de cunho exclusivamente jornalístico e temporal, ou seja,
focados no quem, quando, onde e por quê; ao contrário, o cronista prefere os
debates acerca das artes; da vida aparentemente requintada dos ricos; da peleja
da vida simples dos pobres; dos triunfos e dos fracassos do esporte, em
especial do futebol; do deboche e do descaramento da vida política; dos
acidentes e desgraças naturais ou não; e, obviamente, dos crimes e das boas
ações que fazem do homem um ser tão paradoxal e fascinante; além disso, não
escapam os pequenos eventos rotineiros e, para muitos, imperceptíveis. Enfim,
tudo é assunto para esse gênero textual.
Texto 01.
Complexo de
vira-latas
Por Nelson
Rodrigues
Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os
jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a
esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem
esbraveje: - "O Brasil não vai nem se classificar!". E, aqui, eu
pergunto: - não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso
e envergonhado?
Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de
acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda
faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional
que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos
digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um
escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo em vão sobre a
derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio
arrancou, de nós, o título. Eu disse "arrancou" como poderia dizer: -
"extraiu" de nós o título como se fosse um dente.
E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvidas: - é ainda a
frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas
o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão.
E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: - se o
Brasil vence na Suécia, e volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé
que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam
acabar no hospício.
Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades
concretas? Eu poderia responder, simplesmente, "não". Mas eis a
verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um
patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto
jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam,
aqui, do aspirante-enxertado Flamengo. Pois bem: - não vi ninguém que se
comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir,
um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.
A pura, a santa verdade é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro,
quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de
único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: - temos
dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas
qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de "complexo de
vira-latas". Estou a imaginar o espanto do leitor: - "O que vem a ser
isso?". Eu explico.
Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em
que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em
todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os
maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque,
diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de
humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso
vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários.
Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: - e perdemos da maneira
mais abjeta. Por um motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a
pontapés, como se vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de
técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O
brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol
para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para
correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.
Insisto: - para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.
Texto 02.
Texto 03.
Recado ao senhor
903
Rubem Braga
Vizinho,
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a
visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o
barulho em meu apartamento.
Recebi depois sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a
sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e
lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o
senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro
tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes,
passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003
se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos
reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros.
Eu, 1003, me limito, a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano
Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o
senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano
Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois
apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo
sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento
de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número)
será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das
22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527
de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda
numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não
incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus
algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que
um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã
e ouvi música em tua casa. Aqui estou.” E o outro respondesse: “Entra, vizinho,
e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar,
pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela.”
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e
amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas
e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os
humanos, e o amor e a paz.
Texto 04.
O exercício da
crônica
Vinicius de
Moraes
O cronista trabalha com um instrumento de grande divulgação, influência
e prestígio, que é a palavra impressa. Um jornal, por menos que seja, é um
veículo de idéias que são lidas, meditadas e observadas por uma determinada
corrente de pensamento formada à sua volta.
Um jornal é um pouco como um organismo humano. Se o editorial é o
cérebro; os tópicos e notícias, as artérias e veias; as reportagens, os
pulmões; o artigo de fundo, o fígado; e as seções, o aparelho digestivo - a
crônica é o seu coração. A crônica é matéria tácita de leitura, que desafoga o
leitor da tensão do jornal e lhe estimula um pouco a função do sonho e uma
certa disponibilidade dentro de um cotidiano quase sempre “muito tido, muito
visto, muito conhecido”, como diria o poeta Rimbaud.
Daí a seriedade do ofício do cronista e a freqüência com que ele, sob a
pressão de sua tirania diária, aplica-lhe balões de oxigênio. Os melhores
cronistas do mundo, que foram os do século XVIII, na Inglaterra - os chamados essayists - praticaram o essay, isto de onde viria a sair a
crônica moderna, com um zelo artesanal tão proficiente quanto o de um bom
carpinteiro ou relojoeiro. Libertados da noção exclusivamente moral do
primitivo essay, os
oitocentistas ingleses deram à crônica suas primeiras lições de liberdade,
casualidade e lirismo, sem perda do valor formal e da objetividade. Addison,
Steele, Goldsmith e sobretudo Hazlitt e Lamb - estes os dois maiores, - fizeram
da crônica, como um bom mestre carpinteiro o faria com uma cadeira, um objeto
leve mas sólido, sentável por pessoas gordas ou magras. (...)
Num mundo doente a lutar pela saúde, o cronista não se pode comprazer
em ser também ele um doente; em cair na vaguidão dos neurastenizados pelo
sofrimento físico; na falta de segurança e objetividade dos enfraquecidos por
excessos de cama e carência de exercícios. Sua obrigação é ser leve, nunca
vago; íntimo, nunca intimista; claro e preciso, nunca pessimista. Sua crônica é
um copo d’água em que todos bebem, e a água há de ser fresca, limpa, luminosa,
para satisfação real dos que nela matam a sede.
Texto 05.
Fernando Sabino
A caminho de casa, entro num botequim da
Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento
de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar
com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de
cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso
conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida.
Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer
num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente
doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais
nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se
repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou
poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem
os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos
acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de
espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras,
deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na
cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal
ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao
redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição
tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para
algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar
o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se
para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe
limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a
aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se
afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a
reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom
encaminha a ordem do freguês.
O homem atrás do balcão apanha a porção do
bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas
uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a
garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não
começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um
discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer
coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda
também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a
mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola,
o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha
repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas.
Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio,
a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra
você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A
negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo.
A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo
crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo
botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração.
Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba,
constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e
enfim se abre num sorriso.
19 - Autobiografia - gênero textual narrativo em que
o escritor conta a sua própria vida ou parte dela em primeira pessoa do
singular geralmente. Para escrever esse gênero textual, que pode conter
quaisquer eventos capazes de compor uma história - das futilidades das
celebridades instantâneas ou juvenis à relevância de pessoas com carreiras
longas e profícuas ou mesmo autoras de obras e feitos extraordinários – além
disso, pode ser escrita em prosa ou em verso, ainda que o primeiro caso seja
muito mais comum. A linguagem empregada pode ir da mais absoluta e rigorosa
aplicação da norma padrão à espontaneidade e descompromisso da linguagem
popular. Essa modalidade textual pode conter ainda confissões, traços
memorialísticos e cartas que revelam ou relembram as experiências e vivências
da pessoa biografada. Tal gênero pode ser escrito em forma de memórias,
diários, coleção de cartas, etc. São exemplos "Confesso que vivi", de Pablo Neruda; "50 anos a mil", de Lobão; "Saindo da sarjeta", de Charles Mingus; "As palavras", de Jean Paul Sartre; etc.
20 – Biografia - texto fundamentalmente narrativo que tem
como foco e razão narrar as vivências, os feitos, as experiências, os
fracassos, as conquistas, etc., de uma pessoa ao longo de toda a sua vida ou
parte dela. Nesse gênero textual, é fundamental o estabelecimento de uma
ordem cronológica e organizada dos fatos narrados, com a ajuda de marcadores
temporais como datas, aniversários, eventos históricos, etc. Além disso, a
utilização de verbos na terceira pessoa do singular e de tempos verbais como o
pretérito perfeito e o presente do indicativo são aspectos marcantes para a
composição do texto biográfico. São exemplos "Vale tudo", sobre Tim Maia, escrita por Nelson Motta; "Anjo Pornográfico", sobre Nelson Rodrigues, escrita por Ruy Castro; etc.
Professor Estéfani Martins
só queria agradecer pelas publicações maravilhosas de voces que me ajudam muito!
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