Caras e caros,
Eis a coletânea desta semana com especial atenção para os dois temas de redação voltados para o Enem que acabaram de ser publicados. Destaco também o excepcional conto do grande Caio Fernando Abreu sobre o qual está sendo finalizado um documentário neste ano.
Indicação 01.
Fonte: caso alguém saiba o nome fotógrafo, gentileza informar nos comentários.
Nota: esta criança vietnamita, convertida em soldado, foi apelidada de 'Little Tiger' por supostamente ter matado duas mulheres consideradas vietcongues - sua mãe e sua professora.
Indicação 02.
Indicação 03.
Aqueles dois
(História de aparente mediocridade e repressão)
Caio Fernando Abreu
Para Rofran Fernandes:
"I announce adhesiveness,
I say it shall be limitless,
unloosen il.
I say you shall yet find the
friend youwere looking for."
(Walt Whitman: So Long!)
A verdade é que não havia mais
ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição
era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso,
sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos
comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo
secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no
relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha
nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma
especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum
se perguntou.
Não chegaram a usar palavras
como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim.
Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro
minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções,
nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais
ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos.
Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras.
Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um
noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de
Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris
nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e
cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.
Passaram no mesmo concurso
para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram
apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul,
prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da
coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal,
nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente,
deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas,
um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa —
fados, astros, sinas, quem saberá? conspirava contra (ou a favor, por que não?)
aqueles dois.
Suas mesas ficavam lado a
lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no
meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente
de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede,
ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário,
justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois
senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o
que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.
II
Eram dois moços sozinhos. Raul
tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do
norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe
não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os
outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não
tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a
não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria
inteiramente verdadeiro.
Além do violão, Raul tinha um
telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos
Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho,
vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do
quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira
de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado
na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o
quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto,
ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.
Eram dois moços bonitos
também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram
nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos
arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até
mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba
ou datilografa papéis oito horas por dia.
Moreno de barba forte azulando
o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão
adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o
mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos
claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram
bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente
consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por
assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de
fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha
e secreta harmonia.
III
Cruzavam-se, silenciosos mas
cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice
do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um
cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar,
mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E
teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um
jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.
Até um dia em que Saul chegou
atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até
tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um
ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze,
apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntou:
que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um
filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como
ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café
e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que
nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre
o filme.
Outros filmes viriam, nos dias
seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também
vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e
sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma
tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana
obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na
pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da
meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se
encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da
conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles
dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.
Atentas, as moças em volta
providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas,
festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram
cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas
histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me
Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No
caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento
desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados,
que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas
complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora,
sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o
que fazer com elas.
Dia seguinte, de ressaca, Saul
não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos
corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste,
entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.
IV
Os fins de semana tornaram-se
tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de
seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca
sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro
estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a
empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no
tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem
com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem
cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes,
Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste
a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas
partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi.
Na segunda, não trocaram uma
palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram
ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles
percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de
Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à
noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável.
Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo
depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul,
Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do
paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram
atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu
os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como
Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente
preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.
Aos domingos, agora, Saul
sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o
tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras,
vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos
Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam.
Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram
juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com
eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os
dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os
olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis,
saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.
V
Quando começava a primavera,
Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra
razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi
a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo
não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van
Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.
No norte, quando começava
dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado,
Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha,
tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. À noite, em
seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando
olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante,
nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas
de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para
ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do
outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.
Raul voltou sem luto. Numa
sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse
vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul
foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer
mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa
noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela,
disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem
saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos
tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem,
abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro:
o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco.
Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos
pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era
possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul
levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou
sem compreender.
Afastaram-se, então. Raul
disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra
coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras
grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo,
olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não
precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou
durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa;
acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem
saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e
confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para
Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.
Depois, chegou o Natal, o
Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição.
Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na
parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco
chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas
Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos
de quem nunca amou.
Foi na noite de trinta e um,
aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à
nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de
deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir
nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse
Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa,
outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro
do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã,
Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas
olheiras.
Quando janeiro começou, quase
na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro
Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção
os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto
ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las.
Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva",
"desavergonhada aberração", "comportamento doentio",
"psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da
Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia
muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra
erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o
chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os
senhores estão despedidos.
Esvaziaram lentamente cada um
a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol
de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope
pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que
guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú
Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto.
Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.
Mas quando saíram pela porta
daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária,
vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a
azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns
minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a
porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não
ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.
Pelas tardes poeirentas daquele
resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul
sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase
todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre.
E foram.
Caio Fernando Loureiro
de Abreu nasceu no dia 12 de setembro de 1948, em Santiago (RS). Jovem
ainda mudou-se para Porto Alegre onde publicou seus primeiros contos. Cursou
Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, depois Artes Dramáticas,
mas abandonou ambos para dedicar-se ao trabalho jornalístico no Centro e Sul do
país, em revistas como Pop, Nova, Veja e Manchete, foi editor de Leia Livros e
colaborou nos jornais Correio do Povo, Zero Hora, O Estado de São Paulo e Folha
de São Paulo. No ano de 1968 — em plena ditadura militar — foi perseguido pelo
DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), tendo se refugiado no sítio da
escritora e amiga Hilda Hilst, na periferia de Campinas (SP). Considerado um
dos principais contistas do Brasil, sua ficção se desenvolveu acima dos
convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando uma temática própria,
juntamente com uma linguagem fora dos padrões normais. Em 1973, querendo deixar
tudo para trás, viajou para a Europa. Primeiro andou pela Espanha, transferiu-se
para Estocolmo, depois Amsterdã, Londres — onde escreveu Ovelhas Negras — e
Paris. Retornou a Porto Alegre em fins de 1974, sem parecer caber mais na
rotina do Brasil dos militares: tinha os cabelos pintados de vermelho, usava
brincos imensos nas duas orelhas e se vestia com batas de veludo cobertas de
pequenos espelhos. Assim andava calmamente pela Rua da Praia, centro nervoso da
capital gaúcha. Em 1983 transferiu-se para o Rio de Janeiro e em 1985 passou a
residir novamente em São Paulo.
Volta à França em 1994, a
convite da Casa dos Escritores Estrangeiros. Lá escreveu Bien Loin de Marienbad.
Ao saber-se portador do vírus da AIDS, em setembro de 1994, Caio Fernando
Abreu retorna a Porto Alegre, onde volta a viver com seus pais. Põe-se a
cuidar de roseiras, encontrando um sentido mais delicado para a vida. Foi
internado no Hospital Menino Deus, onde faleceu no dia 25 de fevereiro de 1996.
Bibliografia:
- Inventário do Irremediável, contos. Prêmio Fernando
Chinaglia da UBE (União Brasileira de Escritores); Rio Grande do Sul:
Movimento, 1970; 2ª ed. Sulina, 1995 (com o título alterado para Inventário do
Ir-remediável).
- Limite Branco, romance. Rio de Janeiro: Expressão e
Cultura, 1971; 2ª ed. Salamandra, 1984; São Paulo: 3ª ed., Siciliano, 1992.
- O Ovo Apunhalado, contos. Rio Grande do Sul: Globo,
1975; Rio de Janeiro: 2ª edição, Salamandra, 1984; São Paulo: 3ª edição,
Siciliano, 1992.
- Pedras de Calcutá, contos. São Paulo: Alfa-Omega, 1977;
2 ed., Cia. das Letras, 1995.
- Morangos Mofados, contos. São Paulo: Brasiliense, 1982;
9 ed. Cia. das Letras, 1995. Reeditado pela Agir - Rio, 2005.
- Triângulo das Águas, novelas. Prêmio Jabuti da Câmara
Brasileira do Livro para melhor livro de contos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1983; São Paulo: 2 edição Siciliano, 1993.
- As Frangas, novela infanto-juvenil. Medalha Altamente
Recomendável Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Rio de Janeiro: Globo,
1988.
- Os Dragões não Conhecem o Paraíso, contos. Prêmio
Jabuti da Câmara Brasileira do Livro para melhor livro de contos. São Paulo:
Cia. das Letras, 1988.
- A Maldição do Vale Negro, peça teatral. Prêmio Molière
de Air France para dramaturgia nacional. Rio Grande do Sul: IEL/RS (Instituto
Estadual do Livro), 1988.
- Onde Andará Dulce Veiga?, romance. Prêmio APCA
(Associação Paulista dos Críticos de Arte) para romance. São Paulo: Cia. das
Letras, 1990.
- Bien Loin de Marienbad, novela. Paris, França Arcane
17, 1994.
- Ovelhas Negras, contos. Rio Grande do Sul: 2 ed.
Sulina, 1995.
- Mel & Girassóis (Antologia)
- Estranhos Estrangeiros, contos. São Paulo: Cia. das
Letras, 1996.
- Teatro Completo, 1997.
Teatro:
- O Homem e a Mancha.
- Zona Contaminada.
Tradução:
- A Arte da Guerra, de Sun Tzu, 1995 (com Miriam Paglia).
O conto acima foi publicado no livro "Morangos
Mofados", Editora Brasiliense - São Paulo, 1982. Incluído entre "Os
Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", seleção de Ítalo Moriconi,
Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 439, de onde foi extraído.
Fonte:
Indicação 04.
Bosch, Hieronymus - Jeroen van Aeken (1450-1516) pintor e gravador flamengo (Renascimento) - 1500 - tríptico - O jardim das delícias terrenas.
Bosch, Hieronymus - Jeroen van Aeken (1450-1516) pintor e gravador flamengo (Renascimento) - 1500 - óleo sobre madeira - A criação do mundo (O jardim das delícias terrenas fechado).
Nota: “O jardim das delícias terrenas” é um tríptico do
pintor Hieronymus Bosch, que expõe uma visão muito particular e idiossincrática
sobre a história da criação do mundo na parte central, enquanto que nas
laterais são pintados o paraíso terrestre do lado esquerdo e o Inferno do lado
direito. A criação de Bosch revela uma visão desinibida e sem culpa do prazer
proporcionado pela vida mundana e desregrada, a qual é vivamente ilustrada com
detalhes sobre atividades sexuais minuciosamente retratadas na parte central da
pintura. Apesar da abordagem pouco ou nada sacra, a pintura revela uma visão de
certa forma cristã já que insere a vida mundana entre o paraíso e o inferno,
ainda que o este esteja do lado direito e aquele do lado esquerdo, o que,
quando são considerados os aspectos simbólicos e maniqueístas desses dois
lados, tornam-se polissêmicas e algo subversivas as possibilidades de análise
do tríptico. Tal retábulo, quando fechado, apresenta uma pintura que tematiza a
criação do mundo encimada pela inscrição do Gênese originalmente em latim que decreta
"Ele mesmo ordenou e tudo foi criado", como se o bem, o pecado e o
mal representados pelo tríptico aberto fossem todos vontade de Deus. Na parte
central, as representações múltiplas associadas à luxúria refletem o caráter
efêmero da vida por causa da delicadeza com que a vegetação e mesmo as pessoas
são representadas. Em contraponto, as laterais confrontam a vida de prazeres
passageira com a eternidade de sofrimento ou de paz que espera a todos após o
definitivo Juízo que a todos, segundo a tradição cristã, mede e julga. (Estéfani Martins)
Abraços,
Professor Estéfani Martins
opera10@gmail.com
opera10@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário