Caras e caros,
A coletânea desta semana homenageia os 100 anos do nascimento do grande escritor argentino Julio Cortázar, seguramente um dos maiores contistas da literatura mundial, e o inovador artista plástico H. R. Giger, que morreu neste ano e nos deixou órfãos de uma visão espetacular sobre o futuro e sobre a ficção científica. Os textos tratam de vários assuntos atemporais que remetem ao consumo que consome, à desigualdade no mundo da pretensa igualdade, à antropofagia que nos une, à política podre que desune, às verdades tecidas com mentiras, às perguntas sem respostas, à imagem que limita a alma e o corpo e aos que morrem no silêncio de nossa ignorância. Boa leitura.
Indicação 01.
Giger, H.R. - Hans Ruedi Giger (1940-2014) pintor, escultor e designer suiço ligado ao Surrealismo e à Arte Fantástica - 1967 - Escultura em metal - Máquina do nascimento.
Nota: Giger é um dos artistas mais cultuados do século XX, não só pela obra fascinante e inovadora em função do olhar pessimista ou mesmo apocalíptico sobre o futuro, mas também por ter sido o idealizador da estética de filmes clássicos como Duna (David Lynch, inspirado na obra homônima de Frank Herbert) e Alien (Ridley Scott).
Indicação 02.
Indicação 03.
Nota: Ernesto Che Guevara, na época Ministro da Indústria
cubano, bebendo um Coca-Cola, em 1961, em Punta del Este, no Uruguai. Che
Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana, foi flagrado bebendo o
refrigerante considerado como o símbolo do capitalismo e do imperialismo
estadunidense, durante um dos intervalos da Conferência Econômica e Social
Inter-América, em agosto daquele ano. (Imagens históricas)
Fonte:caso alguém conheça o autor da foto, gentileza
deixar nos comentários.
Casa tomada
Julio Cortázar
Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga
(as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus
materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos
pais e de toda a nossa infância.
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o
que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se
estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por
volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e
ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada
ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando
na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos
a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois
pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso
noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada idéia de que o
nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da
genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum
dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar
para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a
derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.
Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém.
Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do
seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam
quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene
não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno,
meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois
o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver
na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma
anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu
bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas.
Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em
vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada
valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene,
porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene
sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado
não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda
xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num
armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não
precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre
aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza
maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas
indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente
os novelos. Era muito bonito.
Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de
jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na
parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor
com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um
banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se
comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de
azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que
as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão;
havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava
para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de
mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar
à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que
levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as
pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a
impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para
mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca
chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é
incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa;
mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no
ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre
os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador,
ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos
móveis e nos pianos.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito
simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto,
por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a
chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de
mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma
coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como
uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi,
ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles
quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais,
fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do
nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.
Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei
com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte
dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves
e cansados olhos.
— Tem certeza?
Assenti.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver
deste lado.
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela
demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava
tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos
havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros
de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou
numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu
somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos
olhávamos com tristeza.
— Não está aqui.
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado
da casa.
Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza
simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia
por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se
acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço.
Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene
cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era
sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora
bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.
Irene estava contente porque sobrava mais tempo para
tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não
afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu
para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre
juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene
falava:
— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um
desenho de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus
olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen
e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se
viver sem pensar.
(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca
pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e
não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas
que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no
meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a
tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada,
as mútuas e freqüentes insônias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram
os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao
passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito,
era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada,
falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há
bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito
poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e
para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para
não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a
sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)
É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências.
Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a
cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho
na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som.
Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado
sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste
lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde
começava a curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz
correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam
cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a
cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.
— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das
suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta.
Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar
para ele.
— Você teve tempo para pegar alguma coisa? —
perguntei-lhe inutilmente.
— Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil
pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram
onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava
chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta
da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter
a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.
Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu por
acaso em Bruxelas, no ano de 1914. Com quatro anos de idade foi para a
Argentina. Com a separação de seus pais, o escritor foi criado pela mãe, uma
tia e uma avó. Com o título de professor normal em Letras, iniciou seus estudos
na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve que abandonar logo em seguida, por
problemas financeiros. Para poder viver, deu aulas e diversos colégios do
interior daquele país. Por não concordar com a ditadura vigente na Argentina,
mudou-se para Paris, em 1951. Autor de contos considerados como os mais
perfeitos no gênero, podemos citar entre suas obras mais reconhecidas
“Bestiário” (1951), “Las armas secretas” (1959), ), “Rayuela”, (1963), “Todos
los fuegos el fuego” (1966), “Ultimo round” (1969), “Octaedro” (1974), “Pameos
y Meopas” (1971), “Queremos tanto a Glenda (1980), “Salvo el crepúsculo” —
póstumo (1984) e "Papéis inesperados" — póstumo (2010). O escritor
morreu em Paris, de leucemia, em 1984.
O texto acima foi publicado originalmente em "Bestiário"
e extraído do livro "Contos Latino-Americanos Eternos", Bom Texto
Editora, Rio de Janeiro — 2005, pág. 09, organização e tradução de Alicia
Ramal.
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