Sermão (prédica ou pregação) é um discurso opinativo e religioso com
intuito de convencer a audiência a respeito de uma determinada conduta ou moral
por meio da contundência retórica das ideias, do discurso de autoridade
sustentado em uma obra ou em dogmas religiosos e da eloquência do religioso que
o profere. Normalmente, envolve temas bíblicos, religiosos, teológicos ou
morais e é dividido estruturalmente em exposição, exortação e aplicação
prática.
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Sermão da Sexagésima
Padre Antônio
Vieira
Pregado na
Capela Real, no ano de 1655
Semen est verbum
Dei. S. Lucas, VIII, 11.
I
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse
hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o
Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão
longe.
Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador
evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de
Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque
no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O
Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga
o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear,
porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns
que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os
que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que
se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua
conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão
buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os
passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço;
os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o
semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores
evangélicos, os homens que professam pregar e: propagar a Fé, é bem que saiam,
mas não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro
triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que
propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: «Uma vez que iam, não
tornavam». As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o
mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar,não tinha regresso
para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim arguis com
muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador
evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os
espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os
caminhos que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas
contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear
(diz Cristo), mas com pouca ventura. «Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e
afogaram-no os espinhos»: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae
suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por
falta de humidade»: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non
habebat humorem. «Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e
comeram-no as aves»: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres
coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram
contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a
quatro géneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como
os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como
as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o
semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa
nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça
do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras
secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens?
Pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus (diz a Glossa).
Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta
maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e pregai
a toda a criatura». Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As
árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos
de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?!
Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam
pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de
achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar
homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos,
haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar ar
a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande
desgraça!
Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a
que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que
aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve
aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado:
Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae
suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo
pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da
missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados,
porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários
comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve
missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins,
mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias
perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas.
Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre
mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos
dos homens: Conculcatum est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos
semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores,
isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas
por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e
perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer
o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos?
Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só
porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar
alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria
isto desistir? Seria isto tornar atrás? -- Não por certo. No mesmo texto de
Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que
aqueles animais da carroça de Deus, «quando iam não tornavam»: Nec
revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que
diz o mesmo texto que «aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou
corisco»: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se
os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando
iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar
como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso
Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda;
continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e
última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu,
cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão
multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo
me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se
perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo
o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte
do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se
perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os
espinhos, já que outra parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram
os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel
da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão
também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os
frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem,
outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam
ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as
que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo
morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? -- Não será
bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao
princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir
desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e
importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos
mais que ouvirdes esta Quaresma.
II
Semen est verbum
Dei
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de
Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são
os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com
cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As
pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e
se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados
com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm,
outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus,
porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações
bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina,
com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit
centuplum.
Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é
uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao
púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco
fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por
um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem
sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo. Este
argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na
experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias
eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da
palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta
reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo;
os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas
metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? -- Nada disto. Nunca na Igreja
de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto
se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em
um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um
velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos
omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era.
Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos
pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande
e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a
mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que
aprendais a ouvir.
III
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de
três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte
de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três
concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de
concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a
graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas:
olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de
olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz.
Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a
conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo?
Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho.
O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz,
que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto
que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos:
de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta?
Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta
proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a
temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se
perderam. E porque se perderam estas três? -- A primeira perdeu-se, porque a
afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque
a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o
que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do
sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é
pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a
chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na
parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva?
-- Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de
frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é
por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos
espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por
falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está
pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o
sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem:
Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et
injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que
se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para
que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? --
disse o mesmo Deus por Isaías.
Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por
parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos
ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é
assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito
grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos
ouvintes. Provo.
Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra
de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho
o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae
spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas
secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou
com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o
trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra,
não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons
faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz
efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos;
lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores
ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os
espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e
ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de
entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir subtilezas, a
esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os
não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os
espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e
vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes
os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores,
porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma
agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa
aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas,
tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades
endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as
pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis
silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com
os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem
os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza,
nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.
Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de
não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as
pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. E tanta a força
da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre
espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar
pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos corações secos e
duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo
nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora
resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o
aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.
Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras
se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe
fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se
a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos
alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem
por indisposição dos ouvintes.
Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da
palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes,
segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é.
Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos
pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? -- Por
culpa nossa.
IV
Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas
leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta
culpa? -- No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a
ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a
matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas
circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando
esta causa.
Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela
circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos eram
varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu?
-- Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso
Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai.
Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia:
Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita
diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o
governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e
outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o
pregador é nome; o que saneia e o que prega é acção; e as acções são as que dão
o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa
nada; as acções, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O
melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? -- o
conceito que de sua vida têm os ouvintes.
Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte ninguém?
Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras
e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda
de David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a
pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da harpa de David lançavam
fora os demónios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca,
eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu
sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar
faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao
vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o
Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer?
Quer dizer que de uma palavra nasceram em palavras? -- Não. Quer dizer que de
poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede
se podem ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? -- Mandou ao
Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra
de Deus, não é obra de Deus: Genitum non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus
e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est.
De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou Deus a
conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus
consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas
importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de
obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as
palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma
rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não
ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem,
todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na
Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não?
A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu
entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na
terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que
entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os
ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam
muito outros.
Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta
como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram
aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de
pinhos e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais
que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por ceptro; continua o
mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma
cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis
todos a bater no peito eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as
bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu
aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já
tinha dito daquela coma e daqueles espinhos, já tinha dito daquele ceptro e
daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? --
Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do
pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos
olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? --
Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o
Baptista tantos pecadores? -- Porque assim como as suas palavras pregavam aos
ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam
penitência: Agite poenitentiam. «Homens, fazei penitência» -- e o exemplo
clamava: Ecce Homo: «eis aqui está o homem» que é o retrato da penitência e da
aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e repreendiam os regalos e
demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se
sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam
composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o
exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo,
com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam
despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo
Clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e
vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como
se hão-de converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas quando
concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os
ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas,
como hão-de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha
doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa
é o semeador e outra o que semeia, como se há-de fazer fruto?
Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de
Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de
Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo,
impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da
própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver
subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos
mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a
maior corte e o maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios
idólatras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?
V
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão
empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão
encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo
há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao
semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque
o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo
é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por
regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por
medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte caia onde cair. Vede como
semeava o nosso lavrador do Evangelho. «Caía o trigo nos espinhos e nascia»
Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae «Caía o trigo nas pedras e
nascia»: Aliud cecidit super petram, et ortum. «Caía o trigo na terra boa e
nascia»: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia
nascendo.
Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas hão-de nascer; tão
naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o
estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da
Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm
arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados;
só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está
aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria
própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só
de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de
cair com queda, há-de cair com cadência há-de cair com caso. A queda é para as
coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para
as coisas porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A
cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas nem dissonantes;
hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e
tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.
Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do
mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? -- O mais antigo
pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera
manuum ejus annuntiat Firmamentum -- diz David. Suposto que o céu é pregador,
deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem
palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec
sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais são estes sermões e estas
palavras do céu? -- As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a
ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com
o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de
trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não
como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes
in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz
influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de
estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma
parte há-de estar branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem
luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra
hão-de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em
paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do
céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito
distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto
e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são
muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e
muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham
muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para
sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas
observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que
não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido
quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o
sermão: -- estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.
Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse!
Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe
culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O
estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível
que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos
de entender o que diz?! Assim como há Lexicon para o grego e Calepino para o
latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara
para os nomes próprios, porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada
autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente, assim o disse o
Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura
de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Ceptro Penitente dizem que é
David, como se todos os ceptros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que
é S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a Águia de África, Santo
Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerónimo; a Boca de Ouro, S. Crisóstomo. E
quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia de
África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que
alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se
houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por
néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há-de ser discrição
no púlpito?
Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo pulido e
estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com
Leão, e pelo escuro e duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com
Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a
reverência a tamanhos autores posto que desejáramos nos que se prezam de beber
destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de nossa queixa?
VI
Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o
modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias,
levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é
muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão
há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador
do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui
seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão
há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro
trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso
e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava,
uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como
semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas,
mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o
sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso
nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento,
outro assunto vai para outro vento; que se há-de colher senão vento? O Baptista
convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate
viam Domini: a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas;
mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive
subvertetur: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias
pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por
isso não pregamos nenhum. O sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só
objecto, um só assunto, uma só matéria.
Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de defini-la, para que se
conheça; há-de dividi-la, para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura;
há-de declará-la com a razão; há-de confirmá-la com o exemplo; há-de
amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as
conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar;
há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e
refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários; e depois disto
há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar.
Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.
Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de
discursos, mas esses hão-de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar
nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem
tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de
ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no
Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só
matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos,
mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos,
senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de
palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter
flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o
fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver
frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver
ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se
tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são
maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas,
não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem
tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta
árvore, à que podemos chamar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do
fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido
dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado
no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como
hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não
faça fruto com eles.
Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os
preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática
observada do príncipe dos oradores evangélicos, S. João Crisóstomo, de S.
Basílio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de S.
Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos
Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se acham os
Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e
outra pregar; uma ensinar e outra persuadir, desta última é que eu falo, com a
qual tanto fruto fizeram no mundo Santo António de Pádua e S. Vicente Ferrer.
Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco.
VII
Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos
pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam.
Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o
seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há-de
pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do
Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e não o alheio, porque o
alheio e, o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja de ciência.
Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já
que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que
chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não
o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas
não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom
para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce
em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há-de deitar raízes, e o que não
tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem
fruto; porque pregam o alheio, e não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em
batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a
ninguém deram vitória. Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe
Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode
vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David
a David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança
alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube
gigante.
Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de
pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes
retia sua: «Refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram
alheias. Notai: Retia sua: Não diz que eram suas porque as compraram, senão que
eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro,
senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e
porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de
pescar homens. Com redes alheias, ou feitas por mão alheia, podem-se pescar
peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de
entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma
rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há-de
fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há-de pescar homens? A
rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A
pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais
superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem
faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.
As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é
recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à
memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.
Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do
Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na
cabeça. Pois por que na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o
que há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela
boca, mas da cabeça. O que sai só da boca pára nos ouvidos; o que nasce do
juízo penetra e convence o entendimento. Ainda tem mais mistério estas línguas
do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos
os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae
tanquam ignis, seditque supra singulos eorum. E por que cada uma sobre cada um,
e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a
cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a
André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a
Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a
Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos
Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas
a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas
todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão
particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil,
João misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal
valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada
razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que também ali
estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no
Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas. Eram trovões que falavam e
desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; «suas, e não
alheias», como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é
pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa.
Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista
sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com
outro nome, senão de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem
peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que
tomou Santo Ambrósio de S. Basílio; S. Próspero e Beda de Santo Agostinho;
Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.
VIII
Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam
os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando.
Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E
verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes
mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o
semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou
o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é
Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho que começou o
Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor, e não arrazoou sobre a
parábola, porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.
Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in
deserto: Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se
definiu o Baptista. A definição do pregador, cuidava eu que era: voz que
arrazoa e não voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e
não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente
neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a
quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos
examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego
nullam causam invenio in homine isto: Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste
tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At
illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a razão
e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a
razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz.
E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os
pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores «nuvens»:
Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio:
relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o
relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um,
o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há-de ser a voz do pregador, um
trovão do Céu, que assombre e faça tremer o Mundo.
Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea:
fluat ut ros eloquim meum: Desça minha doutrina como chuva do céu, e a minha
voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído.
Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non
clamabit neque audietur vox ejus foris? Não clamará, não bradará, mas falará
com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o
praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só
concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra
e se mete na alma. Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os
pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat:
nem a do estilo: Seminare; nem a da matéria: Semen; nem a da ciência: Suum; nem
a da voz: Clamabat. Moisés tinha fraca voz; Amós tinha grosseiro estilo;
Salamão multiplicava e variava os assuntos; Balaão não tinha exemplo de vida; o
seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando, persuadiam e
convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas
juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra
de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?
IX
As palavras que tomei por tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis,
Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É
porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus.
Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) é tão
poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e
nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus,
que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum
seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: «Quem semeia ventos,
colhe tempestades». Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é
vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de
correr tormenta, em vez de colher fruto?
Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho,
não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus?
Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui
habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As
palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de
Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes
podem ser palavras do Demónio. Tentou o Demónio a Cristo a que fizesse das
pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni
verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentença era tirada do capítulo VIII do
Deuteronómio. Vendo o Demónio que o Senhor se defendia da tentação com a
Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo XC, diz-lhe desta
maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit
de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: «Deita-te daí abaixo, porque
prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para
que te não faças mal.» De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a
Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são
palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo,
como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo
tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as
palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que
tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio,
são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as
disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação.
Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que
hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o
púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto,
tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no
monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal
interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em
muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.
Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente
de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes
levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las
alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do
Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não,
porque desde a primeira palavra do Génesis até à última do Apocalipse, não há
tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e
o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses
lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido
em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os padres da Igreja?
É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas
vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que
toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são
palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos que não
façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que
digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem?! E
então ver cabecear o auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a
cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me
espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh, que bem levantou
o pregador! Assim é; mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro
falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então
que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém
parecer demasiada a censura, ouça-me.
Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus
que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi
testes. Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os
Judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se
lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito
as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o
templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como
lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. João
deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em três
dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o
qual os Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição;
e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas o referiram ao templo
material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas
eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as
referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que
foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às
Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes
ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são
palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste
número! Que muito logo que as nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as nossas
fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!
Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a
cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non
sustinebunt: Virá tempo, diz S. Paulo, «em que os homens não sofrerão a
doutrina sã. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes
auribus: Mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão
e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas. A veritate
quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: Fecharão os ouvidos à
verdade, e abri-los-ão às fábulas». Fábula tem duas significações: quer dizer
fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São
fingimento, porque são subtilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de
verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há
pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se
contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas
não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito.
Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se
usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis
se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos
pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos, do que
hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores
documentos para a vida nos versos de um poeta profano, e gentio, que nas
pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso!
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