Crônica
É um texto, originalmente do universo dos relatos históricos, que foi
ao longo do século XX no Brasil mais afinado com o ambiente jornalístico.
Apesar de se confundir com a linguagem jornalística hoje em dia, por vezes,
aproxima-se da Literatura, mais em alguns autores, menos em outros, já que as
liberdades linguísticas permitidas aos cronistas: o flerte com o humor, as
analogias imprevisíveis e inusitadas, a tendência a conter fortes influências
narrativas, a reinvenção na linguagem e a estrutura muito flexível tornam essa
modalidade textual uma forma literária e jornalística em muitos casos difícil
de classificar e delimitar, mas ainda uma ponte muito oportuna entre os jornais
e a arte.
Isso se explica também por causa da opção de não se resumir o universo
da crônica a relatos de cunho exclusivamente jornalístico e temporal, ou seja,
focados no quem, quando, onde e por quê; ao contrário, o cronista prefere os
debates acerca das artes; da vida aparentemente requintada dos ricos; da peleja
da vida simples dos pobres; dos triunfos e dos fracassos do esporte, em
especial do futebol; do deboche e do descaramento da vida política; dos
acidentes e desgraças naturais ou não; e, obviamente, dos crimes e das boas
ações que fazem do homem um ser tão paradoxal e fascinante; além disso, não
escapam os pequenos eventos rotineiros e, para muitos, imperceptíveis. Enfim,
tudo é assunto para esse gênero textual.
Texto 01.
Texto 02.
Complexo de
vira-latas
Por Nelson
Rodrigues
Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os
jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a
esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem
esbraveje: - "O Brasil não vai nem se classificar!". E, aqui, eu
pergunto: - não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso
e envergonhado?
Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de
acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda
faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional
que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos
digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um
escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo em vão sobre a
derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio
arrancou, de nós, o título. Eu disse "arrancou" como poderia dizer: -
"extraiu" de nós o título como se fosse um dente.
E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvidas: - é ainda a
frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas
o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão.
E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: - se o
Brasil vence na Suécia, e volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé
que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam
acabar no hospício.
Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades
concretas? Eu poderia responder, simplesmente, "não". Mas eis a
verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um
patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto
jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam,
aqui, do aspirante-enxertado Flamengo. Pois bem: - não vi ninguém que se
comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir,
um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.
A pura, a santa verdade é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro,
quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de
único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: - temos
dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas
qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de "complexo de
vira-latas". Estou a imaginar o espanto do leitor: - "O que vem a ser
isso?". Eu explico.
Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em
que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em
todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os
maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque,
diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de
humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso
vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários.
Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: - e perdemos da maneira
mais abjeta. Por um motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a pontapés,
como se vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de
técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O
brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol
para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para
correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.
Insisto: - para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.
Texto 03.
Recado ao senhor
903
Rubem Braga
Vizinho,
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a
visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o
barulho em meu apartamento.
Recebi depois sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a
sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e
lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o
senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro
tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes,
passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003
se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos
reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros.
Eu, 1003, me limito, a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano
Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o
senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano
Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois
apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo
sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de
manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será
convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às
7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de
outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda
numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não
incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus
algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que
um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã
e ouvi música em tua casa. Aqui estou.” E o outro respondesse: “Entra, vizinho,
e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar,
pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela.”
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e
amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas
e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os
humanos, e o amor e a paz.
Texto 04.
O exercício da
crônica
Vinicius de
Moraes
O cronista trabalha com um instrumento de grande divulgação, influência
e prestígio, que é a palavra impressa. Um jornal, por menos que seja, é um
veículo de idéias que são lidas, meditadas e observadas por uma determinada
corrente de pensamento formada à sua volta.
Um jornal é um pouco como um organismo humano. Se o editorial é o
cérebro; os tópicos e notícias, as artérias e veias; as reportagens, os
pulmões; o artigo de fundo, o fígado; e as seções, o aparelho digestivo - a
crônica é o seu coração. A crônica é matéria tácita de leitura, que desafoga o
leitor da tensão do jornal e lhe estimula um pouco a função do sonho e uma
certa disponibilidade dentro de um cotidiano quase sempre “muito tido, muito
visto, muito conhecido”, como diria o poeta Rimbaud.
Daí a seriedade do ofício do cronista e a freqüência com que ele, sob a
pressão de sua tirania diária, aplica-lhe balões de oxigênio. Os melhores cronistas
do mundo, que foram os do século XVIII, na Inglaterra - os chamados essayists - praticaram o essay, isto de onde viria a sair a
crônica moderna, com um zelo artesanal tão proficiente quanto o de um bom
carpinteiro ou relojoeiro. Libertados da noção exclusivamente moral do
primitivo essay, os
oitocentistas ingleses deram à crônica suas primeiras lições de liberdade,
casualidade e lirismo, sem perda do valor formal e da objetividade. Addison,
Steele, Goldsmith e sobretudo Hazlitt e Lamb - estes os dois maiores, - fizeram
da crônica, como um bom mestre carpinteiro o faria com uma cadeira, um objeto
leve mas sólido, sentável por pessoas gordas ou magras. (...)
Num mundo doente a lutar pela saúde, o cronista não se pode comprazer
em ser também ele um doente; em cair na vaguidão dos neurastenizados pelo
sofrimento físico; na falta de segurança e objetividade dos enfraquecidos por
excessos de cama e carência de exercícios. Sua obrigação é ser leve, nunca
vago; íntimo, nunca intimista; claro e preciso, nunca pessimista. Sua crônica é
um copo d’água em que todos bebem, e a água há de ser fresca, limpa, luminosa,
para satisfação real dos que nela matam a sede.
Texto 05.
Fernando Sabino
A caminho de casa, entro num botequim da
Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento
de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar
com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de
cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso
conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida.
Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer
num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente
doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais
nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se
repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou
poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem
os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos
acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de
espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras,
deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na
cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal
ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao
redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição
tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para
algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar
o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se
para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe
limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a
aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se
afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a
reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom
encaminha a ordem do freguês.
O homem atrás do balcão apanha a porção do
bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas
uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a
garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não
começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um
discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira
qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha
aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de
mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a
mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola,
o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha
repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas.
Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio,
a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra
você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A
negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo.
A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo
crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo
botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração.
Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba,
constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e
enfim se abre num sorriso.
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