“É gênero difícil, a despeito da aparente facilidade,
e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se deles os escritores,
e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes
credor.” (Machado de Assis)
"No conto tudo precisa ser apontado num
risco leve e sóbrio: das figuras deve-se ver apenas a linha flagrante e
definidora que revela e fixa uma personalidade; dos sentimentos apenas o que
caiba num olhar, ou numa dessas palavras que escapa dos lábios e traz todo o
ser; da paisagem somente os longes, numa cor unida.” (Eça de Queirós)
Ainda que se possa afirmar que é uma narrativa
mais breve do que o romance e a novela, para muitos teóricos é uma forma
narrativa de ficção literária melhor definida pela captação de um instante, de
um momento da trajetória de um núcleo dramático (um protagonista, uma família, etc.).
Isso porque contém geralmente um único drama ou conflito desenvolvido num
espaço restrito, num tempo curto e por um número reduzido de personagens. São
exemplos: “O primo”, Paulo Henriques Britto; “Amor”, Clarice Lispector; etc.
Esse gênero remonta à
Antiguidade na forma escrita e a tempos imemoriais na oralidade. As histórias
contadas no livro egípcio intitulado “O livro do mágico” são precursoras desse
tipo de gênero narrativo, mais tarde a história bíblica de Caim e Abel poderia
muito bem ser enquadrada como um conto. Mais tarde, os irmão Grimm fariam uma
importante contribuição para a história do conto com o seu “Contos para
crianças e famílias”, em que diversas histórias que povoam o imaginário da sociedade
até hoje foram escritas no seu formato e enredo mais conhecido. No século XIX
ainda o conto se estabeleceria como o gênero narrativo ainda muito popular na
atualidade, contribuiriam para a história do conto Maupassant, Edgar Allan Poe,
Mary Shelley, Leon Tolstoy, Flaubert, Machado de Assis, Gogol, Arthur Conan
Doyle e Eça de Queiroz, entre muitos outros.
Clique abaixo para ler os exemplos de contos selecionados.
Exemplos:
A igreja do diabo
Machado de Assis
CAPÍTULO I
DE UMA IDÉIA MIRÍFICA
Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em
certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem
contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde
séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia,
por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos.
Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do
Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma
vez.
- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra
Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à
farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho
eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja
uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se
dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem
Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os
braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com
Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de
ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo
as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da
sombra para o infinito azul.
II
ENTRE DEUS E O DIABO
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os
serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo
deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
- Que me queres tu? perguntou este.
- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo
rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
- Explica-te.
- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga:
recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais
afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos
cheios de doçura.
- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter
convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por
causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas
palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu
reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E
então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de
dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,
- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta
de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um
mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a
minha pedra fundamental.
- Vai
- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
- Não é preciso; basta que me digas desde já por que
motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma
igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha
alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória,
qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior
ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns
séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a
rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu
proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja;
atrás delas virão as de seda pura...
- Velho retórico! murmurou o Senhor.
- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés,
nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se
do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de
curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, -
a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os
benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou
quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me
detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz
de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma
comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e
sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu
o Diabo.
- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito
da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e
redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem
originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te
retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do
tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
- Já vos disse que não.
- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime.
Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos,
na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e
mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí
a franja de algodão?
- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
- Negas esta morte?
- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de
caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente
aborrecê-los...
- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a
tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os
homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus
impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as
harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar;
dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
Ill
A BOA NOVA AOS HOMENS
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se
pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a
espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas
entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da
terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo;
mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir
as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites
sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e
único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do
coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos
lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um
lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o
entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de
si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A
doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à
substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e
deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser
substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a
luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou
não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e
a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem
o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de
Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as
melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão
superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi
a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de
ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela
virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons
manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela
sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica,
pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos
seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou
friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas;
virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo
incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas,
trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que
ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era
a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia
que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos,
outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração,
porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo
chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo,
era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender
a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma
razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não
podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são
mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?
Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem
os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo
a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um
privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim
o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou
pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria
dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo
tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e
subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das
injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a
calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária,
ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa
da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois
equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram
condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e
pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção
foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o
respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria
cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um
obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples
invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo
senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à
demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um
padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das
marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há
próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando
se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a
particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si
mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por
metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: -
Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada
acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos
adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
IV
FRANJAS E FRANJAS
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja
capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja,
deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram
chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a
doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma
língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de
triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que
muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as
praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às
ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes
por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas,
à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário
restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez,
com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que
estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais
diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até
incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente
uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das
vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para
ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o
procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano;
roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que
rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas
extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos
seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne
falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana,
telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na
cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao
jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de
um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e,
conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas
vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha
aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de
refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao
passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa
secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o
interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica.
Pôs os olhos nele, e disse:
- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres
tu? É a eterna contradição humana.
Fonte: Contos Consagrados - Machado de Assis - Coleção
Prestigio - Ediouro - s/d.
Texto 02.
Um saco de risadas
Eu sou feliz. Sou muito feliz. Sou feliz demais. Eu sou
tão feliz, mas tão feliz, que cada degrau da minha vida é um sorriso onde eu
piso. Ah essa brancura da dentadura que se espalha! Essa cara de palhaço
estampada no espelho! Já nem tenho tempo de parar pra rir: rio dormindo, rio
acordado; rio correndo, rio parado. Rio um riso arrepiado, rio o riso
arrependido. Rio o riso dos amantes, rio o riso dos maridos. Riso esganiçado.
Riso empedernido. Rio quando cago. Rio quando mijo. Rio quando o sol aparece,
rio quando fica escondido. Ninguém pode me proibir. Um desgraçado também pode
rir! Rio pra seduzir, rio pra disfarçar, rio pra distrair, rio pra suportar. O
eterno exercício do maxilar! Rio no almoço, rio no jantar. O riso da garganta
em carne viva, riso que se morde na gengiva. Rio de tudo, rio de nádegas, riso
absurdo, riso de cócegas. O riso feito um soluço. Riso rido como um susto! O
riso de terror petrificado. Rir de um corpo estatelado. Risos calculados. O
riso embasbacado dos casais apaixonados. E eu rio com o que tenho de dentes!
Alegria enxurrada de enchentes! Riso histérico dos dementes! Rio porque é duro.
Rio porque é de graça. Gás hilariante espalhado pelas praças! Rir com
segurança, rir das ameaças! Rio quando cheiro. Rio sem vergonha. Rio quando
fumo. Rio com maconha o riso dos malucos. Rio quando encontro, rio quando
esbarro. Rio porque é sério, rio tirando sarro - a língua mergulhada na saliva
e no catarro! Rio tomando água, rio bebendo pinga. Rio porque são frescas. Rio
porque são lindas. O riso como um pote de pimenta gargalhando num sorriso que
aumenta. Rio o riso dos primeiros, rio o riso dos cansados. Rio o riso dos
coveiros, rio o riso dos defuntos. Rio pra me lembrar. Rio pra me esquecer.
Risos pra resfriar, risos pra aquecer. Rir o riso dos parentes, rir o riso dos
amigos, rir o riso dos contentes, rir o riso dos falidos. Rio o riso do pecado.
Rir um riso preocupado. O riso do cachorro se pendura pelo rabo. O riso das
hienas quando encontram a carniça. O riso dos ateus que precisam ir à missa. O
riso imaculado, o vagabundo e o invocado. O riso dos maduros, o riso dos
meninos. Sorrisos em apuros: o destino dos forçados, a sina dos verdugos. O
riso amarelo da educação. O riso budista da meditação. Rir como aviso. A pura
tentação do riso. As risadas meladas das tortas arremessadas. Rir o riso
pastelão, riso engarrafado de televisão. As mesmas piadas repassadas e caímos
na cilada! Rio em congestionamento, rio em casamento. Rio com farinha, rio com
cimento. Rio direto. Do bom, do melhor, do desprezível. Rir que o riso é
infalível. Uma risada grudando na outra, fazendo uma música rachada no céu da
minha boca. Rio da minha cara, rio da minha fome. A vingança que se cospe no
prato frio. Rir à puta que pariu! Rio por dentro de pesadelos esquisitos; nas
marquises dos edifícios espremidos, rir o riso dos pobres, rir o riso dos ricos
(é bom que fique claro: o riso dos bacanas é o mesmo dos coitados). Com a cara,
a coragem, a covardia. Rio todo dia. Rio porque sim, rio porque não. Rio de
janeiro, fevereiro ou março. Rio de mim, rio do fim, rio de você. Ontem ainda
"estava" feliz, mas hoje "eu sou". Nada abala minha
felicidade. Eu sou feliz. Feliz até à carne. Feliz demais. Risos. Só risos.
Nada mais. Exalo felicidade por todos os poros. Uma felicidade contagiante
mesmo. Uma hora dessas, puxa! Eu nem sei... (Fernando Bonassi)
Texto 03.
“Os crimes da Rua Morgue”, Edgar Allan Poe.
Texto 04.
Amor*
Um pouco cansada, com as
compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume
no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando
conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons,
uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si,
malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o
fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos
poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara
lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo
horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não
outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o
cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos,
crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de
fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo,
tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais
perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada
mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do
que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava
blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu
desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias
realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e
suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de
aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida
podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana
sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar
perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de
mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com
quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos
verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de
vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade
se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que
viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que
sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma
exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade
insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto.
Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução
reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava
vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído
nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em
espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu
espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam
transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar,
cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da
tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com
sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres.
Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem
arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e
suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela
o quisera e escolhera.
O bonde vacilava
nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava
anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou
profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se
arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então
que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre
ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham
avançadas. Era um cego.
O que havia mais
que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava
sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava
chicles.
Ana ainda teve
tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração
batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se
olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os
olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente
deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado,
Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas
continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada
súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do
colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de
saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se
mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de
rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta,
incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos
se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam
entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos
inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi
jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor,
o bonde deu a nova arrancada de partida.
Poucos instantes
depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando
goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô
era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o
sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as
compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal
estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a
sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do
acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível…
O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam.
Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram
periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão —
e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam
para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao
banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser
revertidas com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de
crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as
coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho
uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a
rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado.
Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada
pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na
com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto.
Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho!
Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade
extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão
bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena
compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas
para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito
de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava
tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce,
até a boca.
Só então percebeu
que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a
atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si,
segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia
ter saltado no meio da noite.
Era uma rua
comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava
inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava
a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou
parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo
de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente
pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou
os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia
acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a
aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o
atalho.
Ao seu redor havia
ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o
Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o
meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo
era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve
e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na
aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo
andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em
torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava
na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada.
Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as
frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de
circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de
sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore
pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O
assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que
imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias
e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era
macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a
mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam
carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia
crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela
estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a
guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio,
onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na
relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A
decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com
a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do
mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o
seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite
agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a
terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia
nojo.
Mas quando se
lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma
exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a
alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade
soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O
vigia apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não
chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede
até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo
cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível,
seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam
limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era
essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo
moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de
pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com
força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela
amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como
sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a
aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a
ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim
Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo
demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se
seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que
precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas
delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe,
chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não
deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar,
escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior
olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair
numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como
fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava.
Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É
que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a
pior vontade de viver.
Já não sabia se
estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se
distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam
ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror
descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a
sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria
apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada.
Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah!
era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira
a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma
piedade de leão.
Humilhada, sabia
que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por
quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar.
Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com
este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na
sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida
arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno
horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a
pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor
se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se
fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O
pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na
água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros
inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror,
horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o
creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite
cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois
seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus
olhos.
Depois o marido
veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as
janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor
do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas
crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria
inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os
outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas
janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não
discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom
e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma
borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse
seu.
Depois, quando
todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta
que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego
desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de
novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade
de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as
vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do
Jardim Botânico.
Se fora um estouro
do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha
e deparando com o seu marido diante do café derramado.
— O que foi?!
gritou vibrando toda.
Ele se assustou
com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
— Não foi nada,
disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do
estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em
rápido afago.
— Não quero que
lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
— Deixe que pelo
menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem
força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na
casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é
tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da
mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a
vertigem de bondade.
E, se atravessara
o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante
sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela,
soprou a pequena flama do dia.
Clarice Lispector
Extraído no livro Laços de Família, Editora Rocco – Rio
de Janeiro, 1998
*Considerado por Ítalo Mariconi um dos 100 melhores
contos brasileiros do séc. XX
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