Manifesto é um gênero
textual em que predomina a tipologia textual argumentativa. Consiste em uma
declaração pública de princípios, valores e intenções a fim de propor uma
mudança, fazer uma análise crítica de um evento ou processo, expor um problema
ou convocar um dado grupo a se unir para realizar determinado feito, etc.
Conceitualmente, os manifestos em geral tendem a ter um tom crítico em relação
à sociedade ou a setores dela em uma espécie de declaração de intenções, em que
argumentos são arrolados como justificativa para as ideias propostas. Do ponto
de vista linguístico, trata-se de um texto de estrutura relativamente flexível,
ainda que tenda a se assemelhar a uma dissertação ou a um texto opinativo, além
disso há presença de vocativos; de referenciais como data, local e informação
sobre autores do manifesto e sobre aqueles que se filiaram ou filiarão a ele;
de título; de verbos no presente do indicativo ou no modo imperativo; de uma
linguagem intimamente associada ao público alvo desse gênero textual; etc.
Enfim, é um discurso político em que se discute e questiona determinada visão sobre
aspectos sociais e econômicos ou mesmo estéticos e artísticos. São exemplos os
manifestos futurista, comunista, surrealista, antropófago, da poesia Pau Brasil,
das sete artes, da arte concreta, etc.
Considerações a
respeito da estrutura e da linguagem do manifesto
1. Estrutura
geralmente dissertativa e tipologia predominante é a argumentativa;
2. A estrutura
textual responde de forma relativamente flexível as seguintes regras gerais:
introdução deve conter o problema ou questão que motiva a criação do manifesto;
no desenvolvimento devem ser concatenados os argumentos que fundamentam a razão
de ser da mudança que se pretende com o manifesto e a conclusão quase sempre é
construída de maneira a reforçar a conclamação dos leitores a se filiarem às
ideias defendidas no manifesto;
3. Texto
entremeado de conclamações, daí o uso frequente de vocativos;
4. A linguagem é
bem variada quanto à formalidade, à objetividade, etc. É condicionada a fatores
como: os destinatários do manifesto? Veículo pelo qual será divulgado?;
5. Uso de verbos
no presente para reforçar a necessidade de mudança urgente e verbos no
imperativo como forma mais incisiva de interferir na forma de pensar dos
leitores;
6. Referenciais como
local e data comunicados no fim do texto são comuns nesse gênero textual;
7. Normalmente é
assinado pelos autores do manifesto ou em nome de um grupo ou movimento;
8. No título, é
fundamental que se comunica de forma clara e precisa o conteúdo do manifesto;
Texto 01.
Manifesto do Futurismo
1. Nós queremos
cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.
2. A coragem, a
audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.
3. A literatura
exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos
exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto
mortal, o bofetão e o soco.
4. Nós afirmamos
que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da
velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos,
semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que correr
sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.
5. Nós queremos
entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra,
lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita.
6. É preciso que o
poeta prodigalize com ardor, fausto e munificiência, para aumentar o
entusiástico fervor dos elementos primordiais.
7. Não há mais
beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode
ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra
as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostar-se diante do homem.
8. Nós estamos no
promontório extremo dos séculos!... Por que haveríamos de olhar para trás, se
queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço
morreram ontem. Nós já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna
velocidade onipresente.
9. Nós queremos
glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o patriotismo, o
gesto destruidor dos libertários, as belas idéias pelas quais se morre e o
desprezo pela mulher.
10. Nós queremos
destruir os museus, as bibliotecas, as academia de toda natureza, e combater o
moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.
11. Nós cantaremos
as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação;
cantaremos as marés multicores e polifônicas das revoluções nas capitais
modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros
incendiados por violentas luas elétricas; as estações esganadas, devoradoras de
serpentes que fumam; as oficinas penduradas às nuvens pelos fios contorcidos de
suas fumaças; as pontes, semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios,
faiscantes ao sol com um luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam
o horizonte, as locomotivas de largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como
enormes cavalos de aço enleados de carros; e o voo rasante dos aviões, cuja
hélice freme ao vento, como uma bandeira, e parece aplaudir como uma multidão
entusiasta.
É da Itália, que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto de
violência arrebatadora e incendiária, com o qual fundamos hoje o
"Futurismo", porque queremos libertar este país de sua fétida
gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários.
Já é tempo de a Itália deixar de ser um mercado de belchiores. Nós
queremos libertá-la dos inúmeros museus que a cobrem toda de inúmeros
cemitérios.
Museus: cemitérios!... Idênticos, na verdade, pela sinistra
promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios
públicos em que se descansa para sempre junto a seres odiados ou desconhecidos!
Museus: absurdos matadouros de pintores e escultores, que se vão trucidando
ferozmente a golpes de cores e linhas, ao longo das paredes disputadas!
Que se vá lá em peregrinação, uma vez por ano, como se vai ao Cemitério
no dia de finados... Passe. Que uma vez por ano se deponha uma homenagem de
flores diante da Gioconda, concedo...
Mas não admito que se levem passear, diariamente pelos museus, nossas
tristezas, nossa frágil coragem, nossa inquietude doentia, mórbida. Para que se
envenenar? Para que apodrecer?
E o que mais se pode ver, num velho quadro, senão a fatigante contorção
do artista que se esforçou para infrigir as insuperáveis barreiras opostas ao
desejo de exprimir inteiramente seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivale
a despejar nossa sensibilidade numa urna funerária, no lugar de projetá-la
longe, em violentos jatos de criação e de ação.
Vocês querem,
pois, desperdiçar todas as suas melhores forças nesta eterna e inútil admiração
do passado, da qual vocês só podem sair fatalmente exaustos, diminuídos e
pisados?
Em verdade eu lhes declaro que a frequência diária aos museus, às
bibliotecas e às academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos
crucificados, registro de arremessos truncados!...) é para os artistas tão
prejudicial, quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens ébrios de
engenho e de vontade ambiciosa. Para os moribundos, para os enfermos, para os
prisioneiros, vá lá:- o admirável passado é, quiçá, um bálsamo para seus males,
visto que para eles o porvir está trancado... Mas nós não queremos nada com o
passado, nós, jovens e fortes futuristas!
E venham, pois, os alegres incendiários de dedos carbonizados! Ei-los!
Ei-los!... Vamos! Ateiem fogo às estantes das bibliotecas!... Desviem o curso
dos canais, para inundar os museus!... Oh! a alegria de ver booiar à deriva,
laceradas e desbotadas sobre aquelas águas, as velhas telas gloriosas!...
Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades
veneradas! (Filippo Tommaso Marinetti, publicado no jornal francês Le Figaro em
20 de fevereiro de 1909)
Texto 02.
Manifesto antropófago
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de
todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em
drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia
impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo
interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema
americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com
toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos
touristes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E
nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.
Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência
palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A
unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa
não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as
girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre.
Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à
Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de
Keyserling. Caminhamos.
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo.
Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar
comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita
lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o
dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O
antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra
as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da
Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop
do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das
injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das
conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma
Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de
senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio
de bons sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de
ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju*
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos,
dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte
com o auxílio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a
garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias.
Comia.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não
datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão.
Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um
antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que
estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos
viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que
é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas.
Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem.
Antropofagia.
O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das
coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus.
Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que
temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina
de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas
praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros.
Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela
contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi
capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em
totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites
conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido
da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O
que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do
instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade.
Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao
aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a
inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e
cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de
Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João
VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o
faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as
ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a
realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do
matriarcado de Pindorama.
Oswald de Andrade em
Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. (Revista de Antropofagia,
Ano 1, No. 1, maio de 1928.)
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