Complexo de
vira-latas
Por Nelson Rodrigues
Hoje vou fazer do escrete o
meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila
entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos
botecos, por toda parte, há quem esbraveje: - "O Brasil não vai nem se
classificar!". E, aqui, eu pergunto: - não será esta atitude negativa o
disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?
Eis a verdade, amigos: - desde
50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos
uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer
brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode
curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos
ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor
tão grande. O tempo em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há
oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse
"arrancou" como poderia dizer: - "extraiu" de nós o título
como se fosse um dente.
E, hoje, se negamos o escrete
de 58, não tenhamos dúvidas: - é ainda a frustração de 50 que funciona.
Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: -
o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos,
qualquer esperança. Só imagino uma coisa: - se o Brasil vence na Suécia, e
volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria
todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.
Mas vejamos: - o escrete
brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder,
simplesmente, "não". Mas eis a verdade: - eu acredito no brasileiro,
e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um
granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os
ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado Flamengo.
Pois bem: - não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu
contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.
A pura, a santa verdade é a
seguinte: - qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições
e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de
improvisação, de invenção. Em suma: - temos dons em excesso. E só uma coisa nos
atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia
chamar de "complexo de vira-latas". Estou a imaginar o espanto do
leitor: - "O que vem a ser isso?". Eu explico.
Por "complexo de
vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca,
voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e,
sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os maiores" é uma
cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro
inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão
evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada
vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a
vantagem do empate. Pois bem: - e perdemos da maneira mais abjeta. Por um
motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se
vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: - o problema do
escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É
um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é
um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se
convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para
segurar, como o chinês da anedota. Insisto: - para o escrete, ser ou não ser
vira-latas, eis a questão.
Recado ao senhor 903
Recado ao senhor 903
Por Rubem Braga
Vizinho,
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia,
consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor
reclamava contra o barulho em meu apartamento.
Recebi depois sua própria visita pessoal – devia
ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou
desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é
explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a
Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é
impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou
melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o
seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois
números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito, a Leste pelo
1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao
alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são
comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e
funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao
sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22
horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem
vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45,
e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783
para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala
305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser
tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando
dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e
outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são
três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.” E o outro
respondesse: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui
estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é
bela.”
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem
entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o
brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a
amizade entre os humanos, e o amor e a paz.
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