“Carta é monólogo
querendo ser diálogo.”
(Mário da Silva Brito)
“Carta é um telefonema
antiquado. Do tempo em que as pessoas sabiam escrever e ler.”
(Eno Teodoro Wanke)
Corresponder-se talvez seja uma das mais
antigas formas de comunicação escrita e, por isso, um dos mais antigos gêneros
textuais. Seguramente foi um dos primeiros a ter algumas necessidades formais
tornadas públicas, porque fundamentais, tal como o endereçamento, a informação
sobre destinatário e remetente, a datação, etc.
Genericamente, pode-se dividir as
correspondências entre as formais e as informais. Neste grupo figuram desde as
cartas remetidas a pessoas conhecidas com as quais se mantém determinado nível
de intimidade. No universo da formalidade, as cartas podem ser enviadas a
pessoas desconhecidas, a instituições, etc. com significativa preocupação com
questões associadas a pronomes de tratamento, norma gramatical, formatos
oficiais, etc., muito além da percebida na informalidade.
A carta impessoal, normalmente, tem intenção frequentemente
persuasiva em relação a um interlocutor específico, a fim de convencê-lo do
ponto de vista defendido por quem escreve a carta ou demovê-lo do ponto de
vista por ele defendido. Do ponto de vista técnico, é um tipo de
correspondência com linguagem formal, ou seja, exige-se o uso de pronomes de
tratamento adequados à posição ocupada pelo destinatário; o emprego da norma
padrão; um processo de interlocução respeitoso; uma normatização específica ao
contexto em que a correspondência é enviada; etc.
Em tempo, é importante justificar por que se
solicita que a argumentação seja feita em forma de carta em situações de
avaliação. Isso se dá em função do pressuposto de que, se é definido
previamente quem é o interlocutor sobre um determinado assunto, há melhores
condições de fundamentar uma argumentação e avaliar a capacidade do candidato
de moldar sua linguagem, seus argumentos e a informação de acordo com seu
interlocutor.
Embora o foco da carta formal seja um determinado
tipo de argumentação, ela implica também em algumas expectativas quanto à forma
do texto. Por exemplo, é necessário estabelecer e manter a interlocução, usar
uma linguagem compatível com o interlocutor, empregar referenciais espaciais e
temporais, usar marcas de autoria ao longo de toda a carta, assinar quando for
solicitado, etc.
Para o cumprimento da proposta em que é exigida uma
carta impessoal ou formal, não basta dar ao texto a organização de uma carta,
mesmo que a interlocução seja natural e coerentemente mantida; é necessário, acima
de tudo, argumentar por demanda, que
é, em princípio, o entendimento sobre as motivações, as fraquezas e as
preferências do destinatário da correspondência.
De outra forma, carta pessoal é
outra forma de correspondência caracterizada pelo tom informal, pelo envio de
correspondência geralmente para uma pessoa conhecida ou íntima e pelo
descompromisso com algumas convenções formais típicas de cartas remetidas a
desconhecidos ou produzidas em um ambiente profissional ou acadêmico.
Esse subtipo de gênero textual é de
difícil definição, porque oscila em termos técnicos de acordo com o
interlocutor, pois se o destinatário for irmão do remetente a proximidade entre
os dois será expressa por meio da linguagem de forma distinta de uma carta
endereçada a um pai ou avô, ou seja, exige-se a modulação do discurso em função
da intimidade ou proximidade que se tem com o interlocutor em uma específica
situação comunicativa.
Quanto a questões estruturais como
datação, saudações, etc., é importante que, em concursos, sejam respeitadas
essas necessidades, visto que as mudanças nesse contexto comparadas à carta
impessoal são apenas de cunho linguístico. Ainda que, em situações cotidianas,
a carta informal possa prescindir de partes como essas.
Em tempos de avanço tecnológico vertiginoso,
é obrigatório tratar de uma forma de correspondência responsável por não só
romper as fronteiras espaços-temporais como reavivar um costume que pareia
esquecido de trocar correspondências. O nome dessa tecnologia, ferramenta ou
processo criado e popularizado nos últimos 40 anos é correio eletrônico ou
“e-mail”. Trata-se de uma espécie de correspondência ou bilhete enviado
digitalmente por meio de uma rede de computadores e que passou a ser utilizado
com a viabilização da internet desde a década de 1970. No século XX, tornou-se
o gênero textual digital mais comumente usado pelos internautas. Sobre as
características estruturais e linguísticas desse gênero textual, pode-se
identificar facilmente o vocativo ou saudação inicial; o corpo da
correspondência, onde se desenvolve o assunto; a saudação final ou despedida; e
a assinatura. Muitas vezes esse meio de comunicação pode ter anexado a ele uma
quantidade imensa de informações, já que qualquer arquivo de até alguns
megabytes pode ser enviado como anexo de uma correspondência eletrônica.
Esses elementos linguísticos e formais podem variar
segundo o grau de formalidade da relação entre locutor e interlocutor da
correspondência. Da mesma forma, também varia a linguagem em função da relação
entre esses interlocutores. Os períodos de um “e-mail” costumam ser curtos e na
ordem direta para favorecer a clareza e a objetividade do texto. Por meio desse
recurso, são integradas pessoas em questão de segundos, ou mesmo em tempo real,
ignorada a distância em que se encontram os falantes. Vale lembrar uma
peculiaridade do correio eletrônico, que é a presença de um campo para título
ou assunto que antecipa o tema desenvolvido no corpo dele.
Ainda sobre o processo de envio e recebimento de
mensagens eletrônicas entre pessoas, entidades e instituições, calcula-se que
ela alcança volumes gigantescos, muito em função das mensagens não solicitadas,
conhecidas como “spam”. Se utilizado com bom senso e de forma adequada, o “e-mail”
pode tornar-se uma ferramenta importante no estabelecimento de relações
profissionais; no apoio ao trabalho pedagógico; no estreitamento da relação
entre as pessoas; na divulgação de eventos; etc. O endereço eletrônico de uma
pessoa, entidade ou corporação é formado pelo nome escolhido pela pessoa para
nomear sua “caixa de correio virtual”; pelo símbolo arroba (@); pela designação
do segmento a que esse correio eletrônico pertence, por exemplo, a expressão
“com” sugere que se trata de um endereço comercial e o “br” informa que o
endereço é do Brasil. Eis um exemplo para simples ilustração: opera10@gmail.com.
O Hotmail, Gmail, Yahoo, UOL, Terra entre milhares de outros são provedores
gratuitos de endereços de “e-mail” na internet.
:::Exemplos de cartas
Exemplo 1 – Carta em vestibulares
Proposta
C: Carta Argumentativa
Em função do recorte temático da proposta C, o
candidato deveria escolher uma das campanhas mencionadas na coletânea ou outra
que ele viesse a eleger, desde que ajustada à natureza do debate proposto pelas
instruções e pelos excertos da coletânea. Ou seja, a campanha em foco deveria,
necessariamente, ser promovida pelo governo.
Ao redigir sua carta, o candidato deveria levar em
consideração o fato de que as campanhas promovidas pelo Ministério da Saúde
brasileiro fazem parte de uma política pública formulada pelo governo. Tais
campanhas visam a informar e educar a população com uma gama diversa de
objetivos: evitar a disseminação de epidemias; promover o que, nessa política,
se considera bem-estar social; e conter gastos do sistema público de saúde, já
que, notoriamente, é menos oneroso prevenir do que tratar das doenças.
Era preciso também que o candidato refletisse sobre
os pontos positivos da estratégia da campanha escolhida, relacionando-a com a
natureza da doença. Dentre os pontos positivos, o candidato poderia apontar,
por exemplo, os bons resultados da campanha. Ou ainda que ela revela um bom
diagnóstico, por parte do governo, acerca das dificuldades inerentes ao combate
da doença.
O candidato deveria endereçar sua carta ao Ministro
da Saúde, expor seu ponto de vista a respeito da estratégia da campanha e
apresentar argumentos convincentes que justificassem a manutenção da mesma.
Tratando-se de uma carta, sempre deverão ser muito
bem elaboradas tanto a imagem de seu autor, quanto a de seu interlocutor, nesse
caso específico, a do Ministro da Saúde (que poderia ser construída em termos
de lugar institucional ou particularizada na figura do atual ministro da saúde,
José Gomes Temporão).
Redação
acima da média segundo a Unicamp
São
Paulo, 18 de novembro de 2007.
Excelentíssimo
Senhor Ministro Temporão,
Há um artigo na nossa atual Constituição que o
senhor deve conhecer bem; diz ele: “a saúde é direito de todos e dever do
Estado”. Como outros tantos artigos e parágrafos constitucionais, o que
transcrevi é muitas vezes alvo de galhofas, dado o histórico da atuação do
Estado brasileiro na área de saúde e as atuais circunstâncias do serviço
público. Porém, acredito que méritos devem ser louvados e a Constituição
respeitada; por isso não gracejo. Quando estes dois itens encontram-se em
consonância, sinto-me no dever de prestar homenagem aos personagens que
permitiram tal união; eis o motivo da minha carta, referente à magnífica
campanha de combate ao uso de álcool. Esta é a primeira vez que ponho em
prática este meu princípio, portanto saiba que é sincera minha intenção.
A beleza da campanha está em sua abrangência.
Sabemos que as doenças cardiovasculares são as principais causadoras de óbitos
no país e que a ingestão exagerada do álcool é um dos fatores de seu
surgimento. Assim, combater o consumo alcoólico preserva não apenas a vida de
jovens e jovens adultos, público-alvo das campanhas publicitárias, mas garante
uma sobrevida maior à toda população. Isso por si só é algo louvável. Além
disso, o foco da campanha é importantíssimo e funciona de maneira precisa: a
conscientização. Afinal, os não-portadores de doenças no coração precisam de
outros motivos para se manterem longe do álcool.
Diferentemente de anomalias congênitas,
tuberculose, gripe, doenças cardiovasculares e afins, quem sofre de alcoolismo
é diretamente culpado pelo seu estado. A condição de bêbado é conscientemente
escolhida. Por esse motivo acredito ser tão bem-vinda as campanhas de
conscientização do governo. Os senhores devem divulgar amplamente os riscos que
o álcool traz com seu consumo para que nossa população não se deixe iludir por
propagandas enganosas ou impulsos inconseqüentes. A maneira como este projeto
está sendo posto em andamento fascina-me: não autoritariamente, opressora e
violentamente como foi implantada, por exemplo, a política pública sanitária de
Oswaldo Cruz, mas apelando à racionalidade humana, à exposição de argumentação
lógica. Isto é extremamente inteligente. Sabemos que a violência é um meio
inadequado de promoção de idéias; penso que até as imagens chocantes colocadas
nos maços de cigarro são uma forma de violência e sabe-se que o efeito que elas
surtem é mínimo. Dessa maneira, apostar na razão é uma estratégia fantástica,
afinal, dirigimo-nos a seres pensantes.
Para aqueles que esquecem a razão de lado, outro
mérito da atual campanha é o endurecimento das leis, como por exemplo o aumento
dos espólios de motoristas embriagados, que tanto mal já provocaram a milhares
de famílias nesses campos de batalhas que são nossas estradas. Convencer,
argumentar é preciso; porém, a lei deve ser cumprida e até mesmo nesse ponto a
campanha é um sucesso.
Pois bem, o governo, especialmente seu Ministério,
está educando a população e punindo severamente quem infringe as leis. Estas
duas práticas estão sendo realizadas de forma inteligente e ativa, o que muito
me alegra. Acredito que, muito além de uma campanha de prevenção do alcoolismo
e de combate ao álcool, o que o senhor está promovendo é uma ampla rede de
contenção de danos. Ora, é do conhecimento de todos os males que o álcool ata à
teia da vida: depressão, violências, mortes. Expor essas facetas ao povo nunca
é demais, vide o caso da dengue: todos sabem os perigos da doença, mas poucos
ativamente colaboram para erradicá-la.
A atual direção dada ao combate do álcool pode
muito bem servir de base para aprimorar a luta contra a dengue, por exemplo. No
fundo, os princípios básicos são os mesmos.
Portanto, peço que a atual campanha continue nos
planos do governo pelos próximos anos. A abundância de aspectos positivos e bem
realizados, aliada aos benefícios à curto e longo prazo que eles trarão, é
suficiente para mantê-la na pauta do seu Ministério. Sei que o senhor enfrenta
pressões para abrandar ou extinguir esta luta contra a dependência alcoólica,
mas tenho fé de que não exista lobby nenhum poderoso o suficiente para anular a
prerrogativa desta minha primeira missiva.
Atenciosamente,
N.B.C.
Comentário da banca
Essa carta atende muito bem às solicitações da
proposta C. O candidato escolhe argumentar a favor da campanha de combate ao
alcoolismo promovida pelo Ministério da Saúde. Elogia uma excepcional atuação
do Ministério no caso específico, enfatiza a necessidade da campanha, lembrando
sua abrangência (voltada não apenas para os consumidores como também para suas
vítimas), identifica públicos-alvo e pondera sobre os efeitos positivos das
medidas preventivas adotadas (tanto nas estratégias de conscientização, quanto
nas de punição), referindo-se, ainda, à aplicabilidade de providências análogas
em outros programas na área de saúde pública, como a campanha contra a dengue.
Assim, consegue explorar a complexidade do recorte temático mantendo-se nele,
de forma a seguir as instruções da prova, a saber: elogiando aspectos da
campanha escolhida que justifiquem sua manutenção.
Para garantir o dinamismo ou interesse do texto, o
candidato não precisou, portanto, recorrer a um modelo de críticas, de
oposições esquematizadas - estratégia notada em muitas redações da proposta C
deste ano. Chama particular atenção o cuidado do candidato com o tipo de texto.
Desde seu início, constata-se nessa carta uma preocupação com a imagem dos
interlocutores, para a qual converge a escolha e o domínio do nível de
linguagem adotada. Como resultado, o texto dialoga constantemente com os
excertos da coletânea. Por exemplo, a citação do texto da Constituição (excerto
no. 1) não é gratuita: os comentários que a seguem, marcados por vocábulos e
expressões de tom mais antigo (“alvos de galhofas”, “não gracejo”), contribuem
para a caracterização de uma imagem de autor associada a uma pessoa mais
tradicional.
Nesse texto, o domínio da língua portuguesa se nota
não apenas na escolha lexical, mas ainda na variação dos recursos coesivos,
assegurando uma leitura fluida, variada, prazerosa. O destinatário está
presente não apenas no vocativo introdutório (“Excelentíssimo Senhor Ministro
Temporão”): por toda a carta, a linguagem cuidadosa, de tom mais formal,
demonstra levar em conta o cargo, as atribuições e mesmo possíveis percalços
(“pressões”, “lobby”) de seu interlocutor no cumprimento de suas funções. O
autor nos remete, com isso, ao cenário de seu interlocutor.
A noção de hierarquia marcada em tais escolhas
lingüísticas contribui também para construir a imagem do autor: a de alguém que
defende (bem) idéias que vão no mesmo sentido: a necessidade de “endurecimento
das leis” por meio de punição severa; a culpabilização do alcoólatra (opondo-se
ao excerto no. 4 da coletânea). Essa imagem não se mostra caricatural: ela
persiste, mas é contrabalançada quando o autor se declara a favor de uma
“conscientização” e de “apostar na razão”, ao elogiar a divulgação das
conseqüências da ingestão de álcool e ao criticar, quer a atitude intrusiva do
governo à época de Osvaldo Cruz, quer a violência no uso das propagandas de
cigarro. O texto realiza, pois, mais explicitamente, um diálogo com os excertos
de no. 1, 3, 4, 5 e 6.
Nota-se a existência de um projeto de texto muito
bem estruturado, que demonstra, por parte do candidato, um domínio do recorte
temático, além de uma leitura atenta e analítica da coletânea. Como resultado
tem-se um tipo de texto em que a argumentação é sustentada pela sua articulação
com o jogo de imagens entre o interlocutor e o autor, de modo a construir uma
carta potencialmente persuasiva.
Exemplo 2 -
Carta intitulada “Leitura do mundo” escrita por Frei Beto por ocasião do
falecimento e em homenagem a memória do grande educador Paulo Freire
"Ivo viu a uva", ensinavam os manuais de alfabetização. Mas o
professor Paulo Freire, com o seu método de alfabetizar conscientizando, fez
adultos e crianças, no Brasil e na Guiné-Bissau, na Índia e na Nicarágua,
descobrirem que Ivo não viu apenas com os olhos. Viu também com a mente e se
perguntou se uva é natureza ou cultura.
Ivo viu que a fruta não resulta do trabalho humano. É Criação, é natureza.
Paulo Freire ensinou a Ivo que semear uva é ação humana na e sobre a natureza.
É a mão, multi-ferramenta, despertando as potencialidades do fruto. Assim como
o próprio ser humano foi semeando pela natureza em anos e anos de evolução do
Cosmo.
Colher a uva, esmagá-la e transformá-la em vinho é cultura, assinalou
Paulo Freire. O trabalho humaniza a natureza e, ao realizá-lo, o homem e a
mulher se humanizam. Trabalho que instaura o nó de relações, a vida social.
Graças ao professor, que iniciou sua pedagogia revolucionária com trabalhadores
do Sesi de Pernambuco, Ivo viu também que a uva é colhida por bóias frias, que
ganham pouco, e comercializada por atravessadores, que ganham melhor.
Ivo aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saber ler, ele não é uma
pessoa ignorante. Antes de aprender as letras, Ivo sabia erguer uma casa,
tijolo a tijolo. O médico, o advogado ou o dentista, com todo o seu estudo, não
era capaz de construir como Ivo. Paulo Freire ensinou a Ivo que não existe
ninguém mais culto que o outro, existem culturas paralelas, distintas, que se
complementam na vida social.
Ivo viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhe os cachos, a parreira, a
plantação inteira. Ensinou a Ivo que a leitura de um texto é tanto melhor
compreendida quanto mais se insere o texto no contexto do autor e do leitor. É
dessa relação dialógica entre texto e contexto que Ivo extrai o pretexto para
agir. No início e no fim do aprendizado é a práxis do Ivo que importa.
Práxis-teoria-práxis, num processo indutivo que torna o educando sujeito
histórico.
Ivo viu a uva e não viu a ave que, de cima, enxerga a parreira e não vê
a uva. O que Ivo vê é diferente do que vê a ave. Assim, Paulo Freire ensinou a
Ivo um princípio fundamental da epistemologia: a cabeça pensa onde os pés
pisam. O mundo desigual pode ser lido da ótica do opressor ou pela ótica do
oprimido. Resulta uma leitura tão diferente uma da outra como entre a visão de
Ptolomeu, ao observar o sistema solar com os pés na Terra, e a de Copérnico, ao
imaginar-se com os pés no Sol.
Agora Ivo vê a uva, a parreira e todas as relações sociais que fazem do
fruto festa no cálice de vinho, mas já não vê Paulo Freire, que mergulhou no
Amor na manhã de 2 de maio. Deixa-nos uma obra inestimável e um testemunho
admirável de competência e coerência.
Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o título de Doutor Honoris
Causa, da Universidade de Havana. Ao sentir dolorido seu coração que tanto
amou, pediu que eu fosse representá-lo. De passagem marcada para Israel, não me
foi possível atendê-lo. Contudo, antes de embarcar fui rezar com Nita, sua
mulher, e os filhos em torno de seu semblante tranqüilo: Paulo via Deus.
Frei Beto
Exemplo 3 – carta enviada pelo filósofo David Hume
a uma importante figura da sociedade europeia
19 de março de 1751
Meus cumprimentos ao procurador-geral. No momento, infelizmente, não
tenho um cavalo à disposição para levar minha gorda carcaça a prestar minhas
homenagens a Sua Obesidade Suprema...
Tenha a bondade de comunicar ao Procurador que li recentemente num autor
antigo chamado Estrabão que, em algumas cidades da Gália, era estabelecido por
lei um padrão fixo de corpulência, e que o Senado estipulava uma medida além da
qual o proprietário de uma barriga que presumivelmente a excedesse era obrigado
a pagar ao erário multa proporcional a sua rotundidade. Sua Excelência e eu
passaríamos muito mal se uma lei como esta fosse aprovada pelo nosso
Parlamento. Pois receio que já transgredimos o estatuto.
Muito me admira, com efeito, que nenhuma harpia do Tesouro jamais tenha
pensado nesse método de arrecadação. Taxas sobre o luxo são sempre as que mais
se aprovam, e ninguém irá dizer que carregar um barrigão por aí tenha algum uso
ou necessidade. Ele é mero ornamento supérfluo, prova de que seu proprietário
dispõe de mais do que aplica em bom proveito e, por isso, é conveniente
reduzi-lo ao nível dos súditos seus semelhantes mediante taxas e impostos.
Como as pessoas
magras são sempre as mais ativas, inquietas e ambiciosas, em toda parte elas
governam o mundo e podem certamente oprimir seus antagonistas quando bem
entenderem. Não permitam os céus que os partidos tory e whig sejam abolidos.
Pois então a nação se dividiria em gordos e magros, e nossa facção estaria,
receio, em situação deplorável. O único consolo é que, se nos oprimirem demais,
acabaremos trocando de lado.
Além disso, quem há de saber se clérigos devotos não irão alegar que a
Igreja corre perigo, se houver imposição de uma taxa sobre a gordura?
Não posso senão louvar a memória de Júlio César pela grande estima que
mostrou aos gordos, e pela sua aversão aos magros. O mundo inteiro está de
acordo que esse imperador foi o maior de todos os gênios que já existiram, e o
maior juiz do gênero humano.
Mas gostaria de lhe pedir perdão, prezada Senhora, por esta longa dissertação
sobre gordura e magreza, que de modo algum lhe diz respeito. Pois a Senhora não
é nem gorda, nem magra, e poderia ser de fato chamada uma notória meã. Mas esta
carta é para ser lida ao procurador. Pois nada contém que precise ficar em
segredo para ele. Ao contrário, espero que possa tirar proveito do exemplo, e
se eu estivesse ao lado dele, tentaria lhe mostrar o meu apoio tanto como desta
outra maneira...
Mas está na hora de concluir pondo um epílogo sério a esta farsa, e
dizendo-lhe uma verdade real e sincera: sou, com a maior estima, prezada
Senhora, seu mais obediente e humilde servidor,
David Hume
Exemplo 4 – Carta pessoal
Belo Horizonte, 30
de abril de 2011.
Querida Maria Clara,
Eu e Joana ficamos muito honrados com sua hospitalidade e queríamos
agradecer pelos dias maravilhosos que passamos na companhia de sua família em
Salvador. Aliás, aproveito também para elogiar os pratos maravilhosos que foram
servidos nos jantares impecáveis em sua casa.
Salvador do acarajé, das baianas, dos terreiros, do Olodum, ficou ainda
mais rica com os seus toques sobre onde ir e o que ver, que nos fizeram
conhecer sua linda cidade para além do turista comum.
Espero que possamos recebê-la em breve em nossa casa em BH. Você conhece
o caminho da Estrada Real? Talvez possamos fazê-lo juntos. Seria legal, não?
Mande notícias quando puder.
Abraços para todos,
Carlos e família.
Exemplo 5 – Carta pessoal
Washington, 11 de
dezembro de 1956, terça-feira.
Fernando,
Estou lendo o livro de Guimarães Rosa e não posso deixar de escrever a
você. Nunca vi coisa assim! É a coisa mais linda dos últimos tempos. Não sei
até onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o limite imaginável. Estou até
tola. A linguagem dele, tão perfeita também de entonação, é diretamente
entendida pela linguagem íntima da gente – e nesse sentido ele mais que
inventou, ele descobriu, ou melhor, inventou a verdade. Que mais se pode
querer? Fico até aflita de tanto gostar. Agora entendo o seu entusiasmo,
Fernando. Já entendia por causa de Sagarana, mas este agora vai tão além que
explica ainda mais o que ele queria com Sagarana. O livro está me dando uma
reconciliação com tudo, me explicando coisas adivinhadas, enriquecendo tudo.
Como tudo vale a pena! A menor tentativa vale a pena. Sei que estou meio
confusa, mas vai assim mesmo, misturado. Acho a mesma coisa que você: genial.
Que outro nome dar? Esse mesmo.
Me escreva, diga coisas que você acha dele. Assim eu ainda leio melhor.
Um abraço da amiga
Clarice.
Feliz Natal!
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